Avelino Nelson Filipe Mazuze[1]
Falar hoje em poesia constitui, sem sombra de dúvida, um esforço de certa
forma genuinamente delicado. Delicado porque: primeiro os pequenos espaços
sobre os quais a poesia caminha são, de certa forma, subterrâneos e inócuos, e que
geralmente vêm acompanhados de pequenas doses de alucinações que, em formato de
vectores transversais, colocam-nos numa situação de litígio visceral com o
mundo e com a vida, sendo, portanto, necessário estranhar-se com o mundo,
navegar pelos platôs do desconhecido e do absurdo da vida.
Segundo, todo ser humano tem a sua algia (dor), que directa ou indirectamente
apresenta manifestações clínicas distintas em cada ente que se apresente ao
mundo e, portanto, seja ele de que grau for. Neste sentido, o poeta (escritor)
enquanto um personagem que se desvia dos padrões normais, ele habita no
interstício da aesthesia.
A aesthesia enquanto
um processo sensorial somestésico e reflexivo demarca a existência de algo tomado como não ideal e que serve para mostrar e:
“[...] balizar aqueles que estão fora da curva
da normalidade. A normalidade é uma invenção que tem como propósito delimitar
os limites da existência, a partir dos quais se estabelece quem são os
anormais, os corpos danificados e deficientes para os quais as práticas de
normalização devem se voltar” (CANGUILHEM, 2007, p.101)
A dor como um processo
de estranhamento de si e para consigo mesmo é na verdade um processo de ruptura
“[...] com a propriedade de
autoconservação, na medida em que ela está
circunscrita na vitalidade da vida, sendo, deste
modo, necessário perseverar-se à revelia da “tendência entrópica” e, portanto, resulta da
capacidade de realizar uma apreciação inconsciente de valor da vida” (CANGUILHEM,
2007, p.58)
Neste sentido, se a relação escritor (poeta)
e o mundo torna-se um processo normativo da vida que ocorre na totalidade do ser vivo, a poesia deixa de ter sentido e perde o seu valor “sensorial
somestésico” e reflexivo, e passa a ser apenas um campo de demarcação do
experimento, da coisa, da coisa em si enquanto um processo instantâneo, um acto,
um mero fazer destituído de prazer. Assim, como válvula de escape o poeta submete
a dor para pequenos espaços onde a experiência senso perceptiva da dor não pode
estar refém das infecundas experiências instantâneas, desterritorializando,
desta forma, as lacunas do in-experimentado, enquanto possibilidade de conferir
à experiência uma natureza intrínseca. Portanto, meu caro, o poeta é um degustador
das percepções proprioceptivas que se desviam do padrão normal de degustação. Um
experienciador de novos campos geográficos, onde o incomum percorre as lacunas
do impensado, onde o acto de degustar a dor, o sofrimento da coisa em si torna-se
experiência inefável.
Terceiro, porque a palavra na poesia expressa um momento
intimo de quem se relaciona com o papel e caneta. Neste sentido, cada verso,
rima, estrofe que talham um poema precisam necessariamente ser amainados,
porque uma carga muito grande de experiência de vida ganha corpo com eles. A
poesia marca a dor de quem a escreve e sente. Sabemos através dos versos e
estrofes o que se sentiu em certo momento e num determinado espaço de tempo,
pois nela permanece a experiência vivenciada. Neste sentido, a poesia e sem
dúvida o modo como concebemos e nos relacionamos com palavra, a expressão da
alma, das paixões, das tristezas, das alegrias e, que sensibiliza qualquer ser
humano. É o “lócus” dos bons encontros, onde o pensamento sai do esquecimento e
permanece no “estado intensivo”.
Os encontros constituem espaços de acções, de
multiplicação de ideias, o “lócus de incorporações” onde a experiência do
pensamento entra em contacto com a realidade e gera forças produtivas, que
partem de linhas de acção da diferença. As linhas representam “fluxos de
acontecimentos”, fios condutores e pulsáveis, onde as ideias permanecem no
estado de excitação e costuram o pensamento enquanto vibração de um paradoxo,
que corresponde ao plano comum da imanência. Neste sentido, os encontros
enquanto virtualidades que representam espaços-atemporais produzem alianças que
normalmente se refazem ou se perpetuam em função do propósito.
Portanto, se os encontros afectivos constituem
espaços de expressão do mundo, onde se estabelecem relacionamentos afectivos de
ideias, a poesia, constitui o “lócus” do pensamento, de articulação dessa dupla
vertente de linhas que permitem obter conclusões a partir de determinadas
premissas que se realizam por meio de intersecções, inferências que normalmente
derivam de uma proposição da outra, sofrendo, portanto “[...] variações em
função do melhor encontro, da melhor conexão possível com aquilo que se trata
de dizer ou de redizer segundo um modo filosófico de pensar” ( ALLIEZ, 2000,
p.49)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANGUILHEM, Georges. Do social ao vital. In: O normal
e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.209-229.
CANGUILHEM, G. O
normal e o patológico. 6 ed. -Rio de Janeiro:
Forense-Universitária,2007.
ALLIEZ, Eric, (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica.
São Paulo: Editora 34, 2000.
DELEUZE, Gilles. Conversações.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
[1] Graduando em Optometria e Ciências Sociais –
Ênfase em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado – UnC
Brasil. Bolsista por meio do convênio entre a Universidade Lúrio – Unilúrio
Moçambique e a Universidade do Contestado – UnC Brasil. Membro do Grupo de
Pesquisa em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas – cadastrado pela Cnpq.
Atualmente esta desenvolvendo um projeto de pesquisa em torno da concepção de
normal e patológico em Georges Canguilhem e seus desdobramentos ético sobre a
relação médico-paciente, realizado com o apoio da Secretária de Estado da
Educação de Santa Catarina, Bolsa do Artigo 170 – Pesquisa”.
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