sábado, 10 de junho de 2017

Kulemba lança 2ª edição do concurso de contos tradicionais


Com vista a desenvolver hábitos de leitura nas crianças e preservar os valores culturas contidos nos contos, foi lançada oficialmente, no Dondo, na manhã deste sábado (10 de Junho de 2017), a segunda edição do Concurso de Redacção de Contos Tradicionais, promovido pela Associação Literária Kulemba.A Escola Primária Completa Josina Machel, cujo recinto ficou pequeno para acolher centenas de alunos vindos de diversas escolas locais, foi o palco escolhido para hospedar a cerimónia, que também contou com diversas individualidades, com destaque para professores e directores de escola.Na ocasião, o Director da EPC Josina Machel, Alexandre Barra, congratulou a iniciativa da Kulemba em promover o concurso, pois entende que esta “é uma acção fundamentalmente pedagógica e que está em consonância com as actividades do sector da educação, porque as crianças precisam destes incentivos constantes para poderem desenvolver as habilidades de leitura e escrita”.“Queríamos dizer a todas as direcções de escola aqui presentes para encorajarem o envolvimento das crianças neste concurso porque, no fim, é o distrito e a educação que saem a ganhar com a qualidade desejada do processo de ensino-aprendizagem”, apelou.O coordenador da Kulemba, na sua intervenção, explicou os objectivos fundamentais do concurso bem como os critérios de participação, sendo elegíveis os alunos matriculados este ano nas 6ª e 7ª classes de todas as escolas primárias do distrito do Dondo.Dany Wambire aconselhou os alunos presentes a passarem a maior parte do seu tempo ouvindo contos tradicionais, lendo e escrevendo do que vendo os programas da televisão. “É bom ver a televisão, mas é ainda melhor ouvir histórias tradicionais porque com elas aprendemos a ser comportados, a gostar do trabalho e a ser pessoas honestas. As histórias continuam a ser muito importantes, por isso, devem ouvir historias e depois escrevê-las para participar no concurso. Estamos a pedir a vocês que deixem de ser aquelas crianças acusadas de não saber nada, por isso, devem provar que realmente sabem alguma coisa, escrevendo histórias e participando no concurso”, desafiou.Wambire aproveitou a oportunidade para também fazer a apresentação dos vencedores da primeira edição do concurso, havida o ano passado, nomeadamente Natasha Macuácua, Fernandel Elias e Catija António, os primeiros três classificados.Por seu turno, o representante da Administradora do Distrito do Dondo destacou a importância desta actividade, na medida em que o concurso vai contribuir para a consolidação das acções de preservação do património cultural imaterial do povo moçambicano, através da sua recuperação da memória colectiva e posterior publicação em livro.Acima de tudo, pretende-se com esta iniciativa resgatar e manter uma comunicação permanente entre os anciãos e as crianças, desenvolvendo ao mesmo tempo as competências de escuta, redacção e hábito de leitura nas pessoas desde a tenra idade. A ideia surge da constatação de que existe uma fraca capacidade de leitura e de escrita nas crianças e jovens, aliada à acentuada degradação dos valores morais, sem que sejam tomadas medidas concretas para estancar o avanço desses problemas.Refira-se que a Associação Literária Kulemba, agremiação sem fins lucrativos, dedica-se à promoção da leitura na província de Sofala, tendo desenvolvido, até ao momento, inúmeras actividades, com destaque para edição da revista literária SOLETRAS e realização de oficinas de leitura envolvendo crianças de escolas primárias. 

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

“Prémio BCI” atribui-se sem regulamento?

De há cinco anos a esta parte, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), em parceria com Banco Comercial e de Investimentos (BCI), tem atribuído um prémio de cerca de 200 mil meticais ao autor, cuja obra tenha sido distinguida como a melhor do ano.
Acontece, porém, que de edição em edição, as críticas ao prémio têm aumentado de tom, relativamente aos critérios adoptados pelo corpo de jurados para atribuir o galardão a um determinado autor. Ou seja, os organizadores e os avaliadores do prémio têm sido acusados de não pautarem pela transparência e honestidade em todo este processo que culmina com a indicação da melhor obra literária de todas as editadas num determinado ano.
Diante destas críticas, a Soletras decidiu seguir o assunto, encontrando em contacto com os organizadores do “Prémio BCI de Literatura” para a obtenção do regulamento que rege o concurso, mas todas as tentativas redundaram num fracasso. Ora vejamos:
No dia 7 de Dezembro, às 17:25 horas, depois de nos ser enviada a carta-convite por Jorge de Oliveira, pedimos-lhe que nos enviasse o regulamento do prémio. Mas não obtivemos resposta alguma.
Já no dia 9, por volta das 15:00 horas, telefonamos ao senhor Clemente Bata, do Departamento de Marketing do BCI, para também lhe pedirmos o regulamento, tendo nos dito: “Quem norma este prémio é a AEMO. Vocês devem pedir o regulamento à AEMO. Eles [os organizadores] é que vos devem dar o regulamento. Se não vos derem, eles deverão dizer porquê”.
Seguindo a orientação de Clemente Bata, telefonamos ao senhor Jorge de Oliveira, curiosamente, o presidente do júri do prémio para, outra vez, lhe pedirmos o regulamento. Esta foi a sua resposta:
“O concurso é para obras de autores moçambicanos, publicadas de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro. Agora, para apanhar o regulamento é preciso ir ao BCI e isso vai dar muito trabalho e não sei se teríamos isso a tempo. Mas [o regulamento] não tem nada de especial, é mesmo para qualquer género e para autores moçambicanos”, esclareceu.

Para além destas, a Soletras efectuou outras tentativas, tanto junto da AEMO, quanto do BCI, mas todas elas não tiveram sucesso. Até ao fecho desta edição, nenhuma resposta obtivemos das partes, em relação à disponibilização do regulamento do concurso que distingue o melhor livro do ano.
Mas o que se pretende explorar no regulamento?
O regulamento de um concurso literário é o documento que esclarece aspectos relacionados à natureza, às categorias, à constituição do júri, ao tempo de avaliação, entre outros. Vejamos por partes.

Natureza do prémio
De acordo com a carta que chegou à nossa redacção, o apuramento do melhor livro do ano de 2015, será feito com base nas obras literárias a serem enviadas aos organizadores até ao dia 31 de Dezembro de 2015.
Ora, o melhor livro do ano pode não estar entre as obras que chegarão às mãos do corpo de jurados até essa data. Por algum motivo, uma determinada obra literária, vista como melhor do ano aos olhos do público, pode não chegar aos organizadores.
Por acaso, está prevista, no regulamento, a distinção de uma obra que não tenha sido enviada pelo seu autor ou representante aos organizadores do concurso?

Categorias a concurso
A carta da AEMO, enviada à nossa redacção, diz que são elegíveis a concurso/prémio todas as obras de autores moçambicanos publicadas do primeiro ao último dia do ano.
Assim, o prémio foi atribuído a um livro de romance, em 2010, de poemas, em 2011 e em 2012, de romance, em 2013 e de crítica literária, em 2014, como melhores obras de cada ano.
Porém, na ausência do regulamento, não ficam claros os critérios usados para a eleição anual do melhor livro, no seio de tantos de diferentes géneros. Se se elegessem as melhores obras por géneros, mais fácil e plausível seria fazer comparações dentro da categoria a que a obra concorre, sendo a partir daí eleita a melhor.
Uma eleição por categoria permitiria, cada ano, distinguir o melhor livro de romance, de poesia, de crónica, entre outros, mas uma comparação genérica, isto é, para escolher a obra mais qualitativa publicada ao longo de um determinado ano é como somar banana e laranja (1 banana + 3 laranjas = 4?).

Tempo de avaliação
O tempo de avaliação das obras candidatas ao prémio do melhor livro do ano pode não ser suficiente para uma justa apreciação e decisão do júri.
As obras a concurso/prémio devem dar entrada na AEMO, através da comissão organizadora, até ao dia 31 de Dezembro de 2015 e serão, depois, submetidas à apreciação do júri, cuja decisão deverá ser pública na última quinta-feira de Janeiro de 2016, segundo se lê na carta a que nos referimos.
Deste modo e feitas as contas, a AEMO e o BCI terão de anunciar, em cerimónia própria, o resultado do concurso/prémio no dia 28 de Janeiro de 2016. E o jurado deverá fazer a apreciação (completa e fundamentada?) num período de três semanas e meia.
A avaliar pelo volume de produção em Moçambique, que tende a crescer cada vez mais, o tempo que o júri tem ao seu dispor, para fazer uma apreciação rigorosa, tal como se exige num prémio nacional de grande dimensão como esse, é bastante curto. Uma apreciação profunda e séria deveria ser feita em, pelo menos, seis meses, sendo abrangidas obras publicadas no território nacional por autores nacionais num ano anterior ao da nomeação do melhor livro. Em menos de um mês, o júri só pode, entre si, debater as conveniências e atribuir o prémio a alguém da sua sorte.

Questões éticas
Num concurso ou prémio literário, há também que se ter em conta algumas questões éticas. Primeiro, temos a questão da preservação da identidade dos membros do júri, que não podem ser conhecidos até que o resultado do concurso seja conhecido. No entanto, neste “Prémio BCI”, já conhecemos o presidente do júri, que, paralelamente, participa da organização e assina a carta-convite.
Segundo, o júri de um concurso literário tem de ser efémero, sob pena de os seus membros serem conhecidos pelos candidatos e aliciados para viciarem o resultado. Neste concurso, assistimos à perenidade de alguns do corpo de jurados, desde que o prémio foi instituído. Vejamos a constituição do júri, nas seis edições, incluindo esta.
Em 2010, o júri foi composto por Ungulani Ba Ka Khosa (Presidente), Aurélio Furdela, Gilberto Matusse e Jorge de Oliveira. Em 2011, Ungulani Ba Ka Khosa (Presidente) e outros cujos nomes não pudemos obter compuseram o júri. Em 2012, foram chamados a constituir o júri Ungulani Ba Ka Khosa (Presidente), Aurélio Cuna, Jorge de Oliveira e Aurélio Furdela. Em 2013, Jorge de Oliveira (Presidente) Aurélio Cuna e Marcelo Panguana foram os membros do júri. Em 2014, participam do corpo dos jurados Jorge de Oliveira (Presidente), Aurélio Cuna e Hélder Faife. Em 2015, a presente edição, conhece-se Jorge de Oliveira (Presidente).
A perenidade de alguns dos membros do júri do Premio BCI de Literatura não pode prejudicar a nossa literatura!

Outra terceira questão ética que se pode levantar neste concurso é sobre a participação dos organizadores. Será moralmente correcto concorrer ao prémio um escritor que, ao mesmo tempo, seja membro da comissão organizadora ou avaliadora? Note-se que, na edição 2013, Ungulani Ba Ka Khosa ganhou o prémio do qual foi presidente do júri, por três anos consecutivos (2010, 2011, 2012). Ou seja, mal se retirou do corpo de jurados, ganhou o prémio. Mera coincidência? 

sábado, 10 de outubro de 2015

Evangelho “literário” segundo Kuphaluxa




Com o objectivo de celebrar a universalidade da literatura, tem lugar, entre os dias 23 e 25 de Outubro, na cidade da Matola, província de Maputo, o Festival Literatas, promovido pelo Movimento Literário Kuphaluxa, uma agremiação de jovens escritores fundadores da revista literária electrónica denominada Literatas.
O evento, a decorrer sob o lema “Memória: um museu contemporâneo”, colocará, no mesmo palco, diversas entidades, entre escritores, músicos, leitores e admiradores de todo o tipo de arte. Trata-se, no concreto, de um conjunto de actividades, com destaque para debates com escritores, música ao vivo, gastronomia e feira de livros.
Em entrevista exclusiva à Soletras, o secretário-geral do Kuphaluxa, Eduardo Quive, deu a conhecer que o seu movimento pretende, na verdade, mudar os paradigmas de contacto entre o leitor e o livro e conquistar novos e diferentes públicos, através de uma série de actividades lúdicas, tendo a literatura como o centro de tudo.
Mais adiante, Quive explicou que o festival enquadra-se num dos principais pilares do movimento, que é o “apoio, promoção e incentivo à leitura”, daí a promoção do evento que visa levar as pessoas a gostarem da leitura. “O que é um livro, quem está por detrás dele e o que faz o livro é a primeira coisa que as pessoas devem saber. Antes, é preciso explicar às pessoas o que é livro; e a literatura não se faz apenas pelo livro, pode ser por meio de dança, gastronomia ou música” – enfatizou a nossa fonte, para quem uma sociedade inteira é literatura e pode ser lida.
Notadamente convencido com a ideia, o activista literário acredita que a massificação da literatura é possível se as pessoas forem encorajadas e estiverem envolvidas em qualquer tipo de arte que pratiquem e apreciem, mesmo as que acham que o livro é para os outros, desde que se promovam eventos do género dentro e fora das zonas urbanas, procurando atingir um público cada vez maior e que normalmente não tem acesso a uma feira de livro ou livraria.
Respondendo a uma pergunta da Soletras sobre como as actividade programadas se relacionam com a literatura, podendo, de alguma forma, influenciar os participantes a gostarem desta arte, Quive esclareceu que todas as actividades ligadas à encenação, ao canto e à dança são primariamente escritas e só depois representadas, cantadas e coreografadas, respectivamente, pelo que entende haver toda a possibilidade de o festival ser de grande impacto para o público não leitor, tornando-o, assim, no amante da literatura.

No evento de três dias, o Movimento Literário Kuphaluxa conta com a participação do Conselho Municipal da Matola e da Associação Cultural Kutlanga – seus principais parceiros. (Cremildo da Cruz)

“Muito do versilibrismo, que anda por aí, não vale nada”

É um homem humilde, mas também verdadeiro. Aliás, a veracidade é um dos requintes da humildade. E este princípio é observado à risca pelo nosso entrevistado, desta edição, sempre que lê um livro de literatura. O seu nome é Manuel Serra Ferreira. E é padre. Então que o chamemos apenas: Padre Ferreira.

É padre jesuíta português, mas foi na Itália onde a sua alma se aproximou, cada vez mais, às artes. Por interesse próprio, estudou quase tudo quanto fosse obra artística. Mas é a literatura que ocupou a maior parte do seu tempo. Prova disso, é que chegado a Moçambique decidiu logo seguir várias gerações de escritores. E sobre a mais recente vaga de escritores moçambicanos, ele escreveu um livro, intitulado “Um presente do futuro: os jovens da literatura moçambicana por volta de 2015”. E usamos este livro, a ser lançado em Outubro do corrente ano, como pretexto para entrevistar o Padre. Leia a entrevista nas páginas que se seguem! 



Soletras: O senhor vai lançar um livro sobre os jovens escritores moçambicanos. É português, e interessa-se pela literatura moçambicana. Quer explicar…
Padre Ferreira: Interesso-me pela literatura, desde jovem, já lá vão muitos anos. Sempre gostei de ler livros literários e sobre literatura. Li sobretudo as literaturas grega, latina, francesa, russa, e outras. Antes de vir para Moçambique, li muita poesia. Tinha uma alma de artista, e interessava-me por tudo o que fosse arte. Aliás, formei-me na Itália, terra de artes e artistas.
Ao chegar a Moçambique (1964), interessei-me logo pela literatura moçambicana. E li Rui Knopfli, José Craveirinha, Noémia de Sousa. Numa segunda fase, li Mia Couto e outros autores da mesma geração, como Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, que era muito meu amigo. Já na Beira (onde resido), lia Heliodoro Baptista, meu grande amigo, e colaborei com Bahassane Adamdgy, que tinha começado uma carreira muito boa, mas, infelizmente, cedo faleceu. Depois, comecei a interessar-me pelos escritores mais novos, de quem se trata neste livro (Um presente do futuro). Justamente quando conheci o Dany Wambire, que está nas origens de todo este livro. Confesso que, se o não tivesse conhecido a ele e à revista Soletras, nada disto seria materializado.
Soletras: Está em Moçambique, desde 1964. Como caracteriza a nossa literatura, nos seus diferentes períodos?
P. Ferreira: Quem responderia muito bem a essa pergunta seria o Professor Dr. Francisco Noa, outro que me honra com a sua amizade!                                                                                    
Quanto aos mais antigos, acho que um dos melhores poetas moçambicanos foi Rui de Noronha. Foi talvez o único a conseguir compor sonetos bem-feitos. Inspirou-se no grande poeta português Antero de Quental. Terá sido um dos escritores moçambicanos a ter influência da literatura de Portugal. Depois, vieram outros, que também receberam influência da mesma literatura. Mas deve-se reconhecer que, à medida que nos afastamos da época colonial, os escritores moçambicanos vão-se libertando da influência da literatura portuguesa. E acredito que, nos próximos tempos, a literatura moçambicana vai dever menos à portuguesa do que à brasileira. Aliás, como observou o angolano Agualusa, um dos maiores escritores moçambicanos, Mia Couto, bebeu do escritor brasileiro Guimarães Rosa. Mas noto nos escritores moçambicanos um progressivo afastamento, próprio de quem procura afirmar-se e ter sua originalidade e autonomia.
Soletras: No seu livro, ocupou-se com obras de 19 jovens escritores moçambicanos pouco conhecidos, contrariando a tendência de alguns críticos nossos, que se têm apegado aos consagrados. Quais são os seus objectivos?
P. Ferreira: Ao escrever este livro, o meu primeiro objectivo era este: escrever um livro, que não fosse meu! Acho que consegui! Note que, na capa do livro, o meu nome está tão ofuscado, e é pelo fulgor dos jovens escritores, que estão aqui dentro! Depois, consegui aliar os meus comentários às entrevistas que eles mesmos cederam à revista Soletras. Deste modo, não fui tanto eu a falar deles, mas foram sobretudo eles a apresentar-se a si mesmos, de forma muito rica. Aqui, estes escritores têm a oportunidade de se lerem um ao outro, numa espécie de partilha de dificuldades.
Soletras: Falou de partilha de dificuldades? Que dificuldades são essas?
P. Ferreira: São, no geral, dificuldades de meios. Uns, por falta de meios financeiros, tiveram dificuldades para publicar os seus livros, mas, com muito sacrifício, acabaram conseguindo. Outros, carecem ainda de algumas ferramentas linguísticas e gramaticais, para melhor escreverem. Mas os problemas de gramática, com que deparei, desde os primeiros que li, não me fizeram desistir do projecto de fazer conhecer estes jovens escritores, e fazer ver claramente que a literatura moçambicana não se encerrou, e tem um futuro garantido. Estes escritores novos, mesmo que algum não esteja ainda bem preparado, para publicar livros, o facto é que já os publica. E é bom que o façam, mesmo com lacunas. Estou convencido de que vale a pena investir nestes novos, porque estão cheios de boa vontade, e com muito a revelar. O talento, que realmente têm, não pode ser ocultado pela eventual pobreza de expressão. Que não depende deles, mas sim das escolas, em que foram formados, que, já não são as mesmas, em que se formaram os escritores do período anterior.
Soletras: A propósito das dificuldades de língua, diz, num dos parágrafos do livro, que Luís Bernardo Honwana, quando publicou “Nós matámos o Cão-Tinhoso”, sabia o português melhor do que alguns escritores de hoje. Regredimos tanto assim? A que se deve isso?          
P. Ferreira: Penso que o texto de Luís Bernardo terá passado por um bom revisor. Não creio que aquela perfeição literária seja trabalho exclusivo dele. De resto, comparo o português falado então com o falado agora. Naquela época, eram menos os que falavam português mas dominavam-no melhor. Hoje, são mais a falá-lo, mas com menos domínio. Aumentou a quantidade, baixou a qualidade. É uma espécie de lei.
Soletras: O senhor parece ter aversão ao versilibrismo. Ou seja, acha que os poetas devem estagiar no verso medido, antes de chegarem ao versilibrismo. Explique-nos um pouco…
P. Ferreira: Mia Couto é o mestre em neologismos; e alguns destes escritores, como o Dany Wambire, seguem esta linha. Quando encontro, nalgum texto, um destes neologismos, bem pensado e criado, não me preocupo em ir ver se a palavra vem ou não no dicionário. Mas segundo as regras, só o escritor de créditos firmados tinha autorização para criar neologismos. Vindo à poesia, penso que o versilibrismo é bom, contanto que seja fruto do trabalho aturado de quem passou pela disciplina do verso medido. Porque senão o poeta põe-se a escrever, como se fosse inspirado por uma musa, e não há musa nenhuma a inspirá-lo. É preciso que ele escreva, como deve ser, segundo as leis, que tem toda a arte. Muito do versilibrismo, que anda por aí, não vale nada. Assim como também há poemas com versos bem medidos, mas que, logo à partida, vê-se que não há ali poesia nenhuma.
Em resumo: para escrever um romance, o escritor deve estagiar no conto, como estão a fazer alguns dos escritores apresentados no livro. Escrever um romance exige um grande esforço, e acho que se não devem queimar etapas. Quem se atreve logo a escrever um romance, geralmente não faz grande coisa. E na poesia, o poeta, antes de avançar para o versilibrismo, deveria estagiar na poesia de verso medido.
Soletras: Mais algum problema que constata nestes jovens?
P. Ferreira: Parece-me tentador e negativo o recurso à temática sexo. Facilmente se é vítima da banalidade. Entretanto, há, neste grupo, algum escritor, que constrói as suas crónicas, do princípio até ao fim, sem meter sexo. E fica tudo muito bem, sem ele. Enquanto, em outros, chega-se perto da pornografia. Eu penso que o poeta é educado e delicado, como a mulher: não lhe fica bem dizer um palavrão. A poesia é mais delicada do que a prosa. Na prosa, eu até admitiria calão, mas na poesia não. A poesia é discreta e delicada, resiste à linguagem denotativa, insiste na conotativa. O poeta não chama todas as coisas pelo seu nome. Transfigura, como faz o Hélder Faife. Consegue meter nos seus textos cenas de sexo, mas de forma limpinha, e por isso eu não lhe faço a menor observação. Depois, acho que todos estes escritores precisam de recordar-se dos níveis da língua, e saber que a literatura não está num nível qualquer, da gíria, do calão, do informativo nem do referencial. É linguagem cuidada.
Soletras: Em relação à reescrita. Acha que estes jovens escritores a praticam?
P. Ferreira: Alguns destes jovens deveriam adquirir o hábito de reescrever os textos, para lhes melhorarem a qualidade. Não se pode pensar logo que tudo está bem, pois há sempre um caminho a percorrer.
Soletras: Os bons críticos literários chegam a não ganhar a simpatia dos escritores. Com este livro, o senhor pode seguir o mesmo caminho…
P. Ferreira: Posso, sim! Primeiro, eu não garanto que o livro esteja isento de todos os traços da leviandade. É tão difícil atingir, sempre e em tudo, a profundidade. Também não estranharia se alguém lesse superficialmente, e ficasse zangado. Mas eu não temo reacções negativas. Se elas vierem, não me perturbam. Não escrevi o livro para receber louvores, escrevi-o por amor a jovens escritores, que nem conheço, e por amor à literatura moçambicana. Estou certo de que estes escritores aqui são adultos, responsáveis, capazes de discernir. E todos eles têm, agora, a certeza de que o seu livro foi lido, por alguém que tem algum conhecimento disto e daquilo, e que dedicou grande parte do seu tempo a fazê-los conhecer e estimar a um público cada vez maior. Se algum deles se voltasse contra mim, o problema seria dele e não meu! Eu aconselhá-lo-ia a gritar baixinho, para não se fazer ouvir por algum dos que falam de mediocridade!
Soletras: Parece que há uma pequena confusão entre os escritores mais velhos e os mais novos. Há quem chegue a dizer que a literatura produzida pelos jovens é medíocre. Em que lado da querela o senhor está?
P. Ferreira: No prefácio do livro, digo que não tenho autoridade para estabelecer a fronteira entre os escritores mais velhos e os mais novos. Mas aos que se consideram mais velhos, eu leio-os, aprecio-os e já publiquei recensões sobre eles. E agora virei-me também para os mais novos. A palavra medíocre não aparece nem podia aparecer no livro, porque se eu achasse medíocres estes escritores, nem me dava ao trabalho de os ler. O termo, para a minha sensibilidade, é pesado. Quando chego a usá-lo, quero dizer que a coisa já está mesmo feia. Mas eu imagino que os mais velhos, quando dizem isso da literatura jovem, só querem dizer que ela não tem a qualidade da deles. Mas eles também já passaram por esta fase, só que não publicaram tão depressa. Quem publica depressa, arrisca-se a ser considerado medíocre. Entretanto, como sói dizer-se, nesta jovem literatura, há madeira para santo ou pano para mangas. No fundo, o que eu procuro «pregar» é que estão aqui uns jovens escritores, que precisam de carinho e incentivo. Eu, um padre de 76 anos, bem mais velho do que alguns dos escritores “consagrados”, dediquei grande parte do pouco tempo que tenho, para os ler, com o cuidado, que este livro manifesta. E valeu a pena.
Soletras: Estando os escritores mais velhos a controlar os grandes prémios literários, há possibilidade de algum deles ser atribuído a um jovem?
P. Ferreira: Acho que, em todo o mundo, os prémios literários não são completamente isentos, têm sempre interesses escondidos. Até o próprio Prémio Nobel é atribuído à mistura com certos interesses, com muitas políticas metidas aí dentro. Esses prémios passam por um crivo, em que há sempre furos. Portanto, não me admira que haja aspectos menos recomendáveis, nos nossos concursos literários. Do grupo destes escritores, que estão no livro, algum poderia ser distinguido em grandes prémios nacionais. E, afinal, até foi! Haja pessoas que os leiam! Pode acontecer que, por vezes, os júris cheguem a atribuir prémios, sem terem lido todos os livros concorrentes, ou os terem lido sem a devida profundidade. Os prémios estão condicionados pelos que os patrocinam, e pelos que julgam os livros. E há sempre interesses metidos, ocultos muitas vezes. Mas também não me admira que alguns concursos terminem sem vencedores, como o que foi noticiado, na edição passada da revista Soletras. Não acho bem que se faça alarido, quando um concurso termina sem vencedores.
Soletras: Dito isto, acha que a objectividade e transparência são aspectos de difícil alcance, em prémios literários?
P. Ferreira: A objectividade é sempre difícil. É mesmo difícil o júri acertar completamente num livro. Pode não acertar, por defeito seu. E, mesmo acertando, nem todos os concorrentes concordarão, pois qualquer um, que escreva um livro, tende a pensar que o seu será o melhor. De qualquer forma, concordo com o escritor Alex Dau, que disse [em entrevista à Soletras]: em Moçambique devíamos ter uma academia de artes e letras, que deveria ser responsável pela organização de prémios literários, a bem da transparência. E deveria diversificar-se ou alargar-se o corpo de jurados, passando a incluir jornalistas culturais, académicos, docentes universitários, etc,. Pessoas que conheçam verdadeiramente a literatura moçambicana.
Soletras: Mudando de assunto: na sua opinião, qual é o papel que os nossos escritores devem ter para com a sociedade? Devem ter um comprometimento com ela?
P. Ferreira: A melhor resposta deu-a Mia Couto, há pouco, aquando do seu doutoramento honoris causa. Ele disse que os escritores podem ter uma influência, na construção dos valores éticos. Eu confesso a minha admiração e estima por alguns jovens apresentados neste livro. Pois apresentam grande preocupação com os problemas sociais e éticos. As entrevistas deles publicadas neste livro, dão disso um animador testemunho. Eles querem contribuir para uma sociedade melhor. Por isso, alegro-me com o que disse Mia Couto. E eu, como padre, sinto que faz parte da minha missão acompanhar estes jovens escritores. Alguns deles até parecem tão moralistas como literatos.
Soletras: Alguma coisa, que não lhe perguntamos?
P. Ferreira: Gostaria que outros se dessem ao trabalho, a que me dei eu: ler, com toda a atenção, e, de caneta e papel, ir anotando tudo. Não leiam assim por cima das brasas, para não darem depois opiniões superficiais. A minha opinião pode ser até má, mas superficial ela não é, porque me esforcei por entrar em cheio nos livros. Era bom que houvesse mais críticos, e é isso que estes escritores pedem e merecem. Eu gostaria que o livro se vendesse, não para eu arranjar dinheiro, mas por amor desses escritores que estão aí dentro. Quanto mais gente os conhecer e animar, mais possibilidades há de o nome de Moçambique ir para a frente. Mais jovens escritores moçambicanos serão conhecidos e terão voz, dentro da literatura ou da cultura moçambicana.


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Editorial de Março de 2015: Urge a descentralização cultural


Nós, todos os artistas, devemos ficar no Maputo? Foi uma pergunta que um músico beirense fez, sem a pretensão de obter qualquer resposta, ao Ministro da Cultura e Turismo, Silva Dunduro, durante uma reunião, que este teve com os artistas beirenses, na casa Provincial de Cultura de Sofala, a 13 de Março de 2015. 
A alocução do músico, Mano Américo, como é conhecido nos meandros musicais, foi emocionante e arrancou muitos aplausos aos seus pares. Diga-se, em abono da verdade, que expressava sentimentos não fabricados na mente, mas sim, no lume do coração. O artista sentia na pele as dificuldades de estar longe da capital Maputo, tida como centro das oportunidades.
As capitais das nações, naturalmente, tornam-se importantes, por hospedarem a máquina central do Estado, e por em torno delas gravitarem as decisões governamentais. Entretanto, no caso da cultura, elas acabam por abafar as manifestações culturais existentes no resto do país, quando os seus dirigentes culturais se distraem. E isto abre espaço para o êxodo provinciano ― ou seja, a migração, das províncias para a capital. Cada artista a viver nas províncias faz o esforço de chegar à capital, para ter oportunidades e ver valorizada a sua arte.
Os pronunciamentos do Mano Américo terão sido feitos para contestar essa distracção dos dirigentes culturais. Que as iniciativas culturais adoptadas pelo governo devem visar, na prática, todas as províncias do País. O que se vê, na prática, não pode, grosso modo, contrariar o que está no papel.
Para a solução do problema, a descentralização adivinha-se como o melhor remédio. Pois, com a descentralização de instituições como o Fundo para Desenvolvimento Artístico e Cultural (FUNDAC), pode se assistir à cultura e à arte, numa perspectiva holística. Expressões como “nós estamos decepcionados com o FUNDAC”, proferida pelo grupo teatral “Só mulheres”, não deveriam multiplicar-se. O FUNDAC não pode continuar a pôr, na sua lista dos projectos patrocinados, mais projectos de artistas a viverem na capital. E deve parar de enfeitar a fotografia dos patrocínios, com apenas dois ou três artistas de fora da capital. 

Entretanto, estamos cientes de que nem todos os problemas serão resolvidos pelo FUNDAC, ou por outras iniciativas do Ministério da Cultura e Turismo. Aliás, o timoneiro deste pelouro desaprovou a tendência que muitos artistas têm, de verem o sector como o pai dos artistas. E nós também desaprovamos, mas não pela mesma razão. Contestamos, porque se assumirmos o pelouro da Cultura como pai dos artistas, admitimos, implicitamente, que o mesmo possa ser gerido como uma família, sem transparência nem prestação de contas. Pois, na família, não haverá filho, que exija a um pai gestão transparente e prestação de contas.      

PRECONCEITO OU PREJUIZO?

Pe. Manuel Ferreira


Conceito (do latim conceptus) significa concebido. Todos nós, portanto, começámos por aí: conceitos. E então, para mim, quem é o mais importante dos conceitos, senão eu? A minha primeira situação vital foi a situação maravilhosa de conceito. O grande milagre! E tanta gente por aí sofregamente à procura deles…
Preconceito é o que vem antes do conceito. E então, qual havia de ser o preconceito de mim, senão o amor?
Passando do denotativo ao conotativo, nós, com excelente bom gosto, falamos da nossa mente como de um maravilhoso útero, que concebe não pessoa mas ideia. E portanto, um conceito passa a ser uma ideia. E a ideia ou conceito exprime-se numa palavra. Por exemplo, com a palavra homem exprimo um conceito, e com a palavra inteligente exprimo outro conceito.
Se eu agora pegar nesses dois conceitos homem e inteligente, e os organizar numa espécie de aliança, numa frase, num período, formulo um juízo, e digo: O homem é inteligente, este homem é inteligente. Passei do exercício de conceber ao exercício de julgar ou ajuizar. A aliança de três conceitos deu um juízo.
E então o que é que vem antes do conceito, para lhe chamarmos preconceito?
Nós, em português, dizemos preconceito, onde os espanhóis dizem prejudício, e onde os franceses dizem préjudice, e onde os italianos dizem pregiudizio. Nós, logicamente devíamos dizer prejuízo. Quem é que está correcto? Dir-me-eis que estão correctos todos, cada qual a seu modo, porque as leis da linguagem não se reduzem às gramaticais.
Mas, de facto, se preconceito significa o que vem antes do conceito, o que é que vem antes do conceito?

O termo prejuízo significa o que vem antes do juízo. E o que é que vem antes do juízo? Antes do juízo vem o conceito. E então o prejuízo seria um juízo nascido antes do tempo, antes de estar suficientemente maduro. Seria um juízo abortado. Houve ali uma ideia, que se intrometeu, e não deixou o conceito amadurecer, até ao juízo correcto. E é exactamente isso o que nós queremos dizer, com o termo preconceito. Acho, assim, que as outras três línguas latinas é que seguem o mais correcto. E não sei exactamente como é que a portuguesa evoluiu, de modo a dar um significado tão diferente à palavra prejuízo, e a chamar preconceito ao que não vem antes do conceito, mas antes o pressupõe. 

FILÓSOFOS E PEDÓFILOS

Pe. Manuel Ferreira


Com um esquema antropológico ternário, ensinaram-me os gregos que eu tenho corpo, alma e espírito. Os animais só têm corpo e alma. O que faz de mim uma pessoa é, exactamente, o meu espírito. E um cristão dirá que é graças ao meu espírito que eu sou à imagem e semelhança de Deus.
O meu corpo cuidam-me dele os médicos. O corpo sente, e aquilo ali é uma sensação. Sentir calor, frio, fome, saciedade. As sensações agradáveis chamam-se prazeres e as desagradáveis, dores.
A minha alma cuidam-me dela os psicólogos e psiquiatras. A alma sente e aquilo ali chama-se sentimento. Sentir pena, dó, medo, apreensão, entusiasmo.
O meu espírito é a fonte das minhas opções, ou decisões, que dão orientação e sentido a toda a minha vida. Os animais são regulados pelos instintos. Eu também tenho instintos, mas sou livre e não ando ao sabor dos instintos, mas oriento a vida, segundo uma opção, uma decisão, uma escolha do meu espírito.
Então, daí, que haja três espécies ou níveis de amor: amor carnal ou eros, amor psíquico ou filia, amor espiritual ou ágape.
Quem amar uma criança, com amor carnal ou erótico e abusar dela, sexualmente,  chama-se pederasta, e pratica a pederastia.
Quem amar uma criança com amor psicológico ou psíquico, tem por ela grande simpatia, dedica-se a ela, e chama-se pedófilo, e pratica a pedofilia. Tal como o amigo da sabedoria se chama filósofo e pratica a filosofia, tal como o amigo da humanidade se chama filantropo e pratica a filantropia.
Ora, então, se a filosofia não é repreensível mas louvável, se a filantropia não é repreensível mas louvável, porque é que a pedofilia tem de andar para aí aos pontapés, tão mal tratada pelos média? Muito simples: estamos no reino da ignorância. É, realmente, por ignorância, que dizem pedofilia em vez de pederastia, e pedófilo em vez pederasta. Seria caso para dizermos aqui: onde se lê e se escuta pedófilo leia-se e escute-se pederasta. E onde se lê e se escuta pedofilia leia-se e escute-se pederastia. Mas a maioria não sabe que isso está linguisticamente errado, e forma-se a procissão. E a minoria, que sabe que está errado, cala-se, e até se adapta, e acaba por entrar no coro da maioria desafinada. E, se houver alguém que se atreva a enfrentar essa enxurrada, mete-se em maus lençóis, porque se mete nestas chatas manias linguísticas! Claro que eu não nutro nenhuma esperança de mudar essa linguagem globalizada. O meu objectivo, aqui, é só informar e entreter!