É um homem humilde,
mas também verdadeiro. Aliás, a veracidade é um dos requintes da humildade. E
este princípio é observado à risca pelo nosso entrevistado, desta edição,
sempre que lê um livro de literatura. O seu nome é Manuel Serra Ferreira. E é
padre. Então que o chamemos apenas: Padre Ferreira.
É padre jesuíta
português, mas foi na Itália onde a sua alma se aproximou, cada vez mais, às
artes. Por interesse próprio, estudou quase tudo quanto fosse obra artística.
Mas é a literatura que ocupou a maior parte do seu tempo. Prova disso, é que
chegado a Moçambique decidiu logo seguir várias gerações de escritores. E sobre
a mais recente vaga de escritores moçambicanos, ele escreveu um livro,
intitulado “Um presente do futuro: os jovens da literatura moçambicana por volta
de 2015”. E usamos este livro, a ser lançado em Outubro do corrente ano, como
pretexto para entrevistar o Padre. Leia a entrevista nas páginas que se seguem!
Soletras: O senhor vai lançar um livro sobre
os jovens escritores moçambicanos. É português, e interessa-se pela literatura
moçambicana. Quer explicar…
Padre Ferreira: Interesso-me pela literatura, desde jovem, já
lá vão muitos anos. Sempre gostei de ler livros literários e sobre literatura.
Li sobretudo as literaturas grega, latina, francesa, russa, e outras. Antes de
vir para Moçambique, li muita poesia. Tinha uma alma de artista, e
interessava-me por tudo o que fosse arte. Aliás, formei-me na Itália, terra de
artes e artistas.
Ao chegar a Moçambique (1964), interessei-me
logo pela literatura moçambicana. E li Rui Knopfli, José Craveirinha, Noémia de
Sousa. Numa segunda fase, li Mia Couto e outros autores da mesma geração, como
Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, que era muito meu amigo.
Já na Beira (onde resido), lia Heliodoro Baptista, meu grande amigo, e
colaborei com Bahassane Adamdgy, que tinha começado uma carreira muito boa,
mas, infelizmente, cedo faleceu. Depois, comecei a interessar-me pelos
escritores mais novos, de quem se trata neste livro (Um presente do futuro).
Justamente quando conheci o Dany Wambire, que está nas origens de todo este livro.
Confesso que, se o não tivesse conhecido a ele e à revista Soletras, nada disto
seria materializado.
Soletras: Está em Moçambique, desde 1964.
Como caracteriza a nossa literatura, nos seus diferentes períodos?
P. Ferreira: Quem responderia muito bem a essa pergunta
seria o Professor Dr. Francisco Noa, outro que me honra com a sua amizade!
Quanto aos mais antigos, acho que um dos
melhores poetas moçambicanos foi Rui de Noronha. Foi talvez o único a conseguir
compor sonetos bem-feitos. Inspirou-se no grande poeta português Antero de
Quental. Terá sido um dos escritores moçambicanos a ter influência da
literatura de Portugal. Depois, vieram outros, que também receberam influência
da mesma literatura. Mas deve-se reconhecer que, à medida que nos afastamos da
época colonial, os escritores moçambicanos vão-se libertando da influência da
literatura portuguesa. E acredito que, nos próximos tempos, a literatura
moçambicana vai dever menos à portuguesa do que à brasileira. Aliás, como
observou o angolano Agualusa, um dos maiores escritores moçambicanos, Mia
Couto, bebeu do escritor brasileiro Guimarães Rosa. Mas noto nos escritores
moçambicanos um progressivo afastamento, próprio de quem procura afirmar-se e
ter sua originalidade e autonomia.
Soletras: No seu livro, ocupou-se com obras
de 19 jovens escritores moçambicanos pouco conhecidos, contrariando a tendência
de alguns críticos nossos, que se têm apegado aos consagrados. Quais são os
seus objectivos?
P. Ferreira: Ao escrever este livro, o meu primeiro
objectivo era este: escrever um livro, que não fosse meu! Acho que consegui!
Note que, na capa do livro, o meu nome está tão ofuscado, e é pelo fulgor dos
jovens escritores, que estão aqui dentro! Depois, consegui aliar os meus
comentários às entrevistas que eles mesmos cederam à revista Soletras. Deste
modo, não fui tanto eu a falar deles, mas foram sobretudo eles a apresentar-se
a si mesmos, de forma muito rica. Aqui, estes escritores têm a oportunidade de
se lerem um ao outro, numa espécie de partilha de dificuldades.
Soletras: Falou de partilha de dificuldades?
Que dificuldades são essas?
P. Ferreira: São, no geral, dificuldades de meios. Uns,
por falta de meios financeiros, tiveram dificuldades para publicar os seus
livros, mas, com muito sacrifício, acabaram conseguindo. Outros, carecem ainda
de algumas ferramentas linguísticas e gramaticais, para melhor escreverem. Mas
os problemas de gramática, com que deparei, desde os primeiros que li, não me
fizeram desistir do projecto de fazer conhecer estes jovens escritores, e fazer
ver claramente que a literatura moçambicana não se encerrou, e tem um futuro garantido.
Estes escritores novos, mesmo que algum não esteja ainda bem preparado, para
publicar livros, o facto é que já os publica. E é bom que o façam, mesmo com
lacunas. Estou convencido de que vale a pena investir nestes novos, porque
estão cheios de boa vontade, e com muito a revelar. O talento, que realmente
têm, não pode ser ocultado pela eventual pobreza de expressão. Que não depende
deles, mas sim das escolas, em que foram formados, que, já não são as mesmas,
em que se formaram os escritores do período anterior.
Soletras: A propósito das dificuldades de
língua, diz, num dos parágrafos do livro, que Luís Bernardo Honwana, quando
publicou “Nós matámos o Cão-Tinhoso”, sabia o português melhor do que alguns
escritores de hoje. Regredimos tanto assim? A que se deve isso?
P. Ferreira: Penso que o texto de Luís Bernardo terá
passado por um bom revisor. Não creio que aquela perfeição literária seja
trabalho exclusivo dele. De resto, comparo o português falado então com o
falado agora. Naquela época, eram menos os que falavam português mas
dominavam-no melhor. Hoje, são mais a falá-lo, mas com menos domínio. Aumentou
a quantidade, baixou a qualidade. É uma espécie de lei.
Soletras: O senhor parece ter aversão ao
versilibrismo. Ou seja, acha que os poetas devem estagiar no verso medido,
antes de chegarem ao versilibrismo. Explique-nos um pouco…
P. Ferreira: Mia Couto é o mestre em neologismos; e alguns
destes escritores, como o Dany Wambire, seguem esta linha. Quando encontro,
nalgum texto, um destes neologismos, bem pensado e criado, não me preocupo em
ir ver se a palavra vem ou não no dicionário. Mas segundo as regras, só o
escritor de créditos firmados tinha autorização para criar neologismos. Vindo à
poesia, penso que o versilibrismo é bom, contanto que seja fruto do trabalho
aturado de quem passou pela disciplina do verso medido. Porque senão o poeta
põe-se a escrever, como se fosse inspirado por uma musa, e não há musa nenhuma
a inspirá-lo. É preciso que ele escreva, como deve ser, segundo as leis, que
tem toda a arte. Muito do versilibrismo, que anda por aí, não vale nada. Assim
como também há poemas com versos bem medidos, mas que, logo à partida, vê-se
que não há ali poesia nenhuma.
Em resumo: para escrever um romance, o
escritor deve estagiar no conto, como estão a fazer alguns dos escritores
apresentados no livro. Escrever um romance exige um grande esforço, e acho que
se não devem queimar etapas. Quem se atreve logo a escrever um romance,
geralmente não faz grande coisa. E na poesia, o poeta, antes de avançar para o
versilibrismo, deveria estagiar na poesia de verso medido.
Soletras: Mais algum problema que constata
nestes jovens?
P. Ferreira: Parece-me tentador e negativo o recurso à
temática sexo. Facilmente se é vítima da banalidade. Entretanto, há, neste
grupo, algum escritor, que constrói as suas crónicas, do princípio até ao fim,
sem meter sexo. E fica tudo muito bem, sem ele. Enquanto, em outros, chega-se
perto da pornografia. Eu penso que o poeta é educado e delicado, como a mulher:
não lhe fica bem dizer um palavrão. A poesia é mais delicada do que a prosa. Na
prosa, eu até admitiria calão, mas na poesia não. A poesia é discreta e
delicada, resiste à linguagem denotativa, insiste na conotativa. O poeta não
chama todas as coisas pelo seu nome. Transfigura, como faz o Hélder Faife.
Consegue meter nos seus textos cenas de sexo, mas de forma limpinha, e por isso
eu não lhe faço a menor observação. Depois, acho que todos estes escritores
precisam de recordar-se dos níveis da língua, e saber que a literatura não está
num nível qualquer, da gíria, do calão, do informativo nem do referencial. É
linguagem cuidada.
Soletras: Em relação à reescrita. Acha que
estes jovens escritores a praticam?
P. Ferreira: Alguns destes jovens deveriam adquirir o
hábito de reescrever os textos, para lhes melhorarem a qualidade. Não se pode
pensar logo que tudo está bem, pois há sempre um caminho a percorrer.
Soletras: Os bons críticos literários chegam
a não ganhar a simpatia dos escritores. Com este livro, o senhor pode seguir o
mesmo caminho…
P. Ferreira: Posso, sim! Primeiro, eu não garanto que o
livro esteja isento de todos os traços da leviandade. É tão difícil atingir,
sempre e em tudo, a profundidade. Também não estranharia se alguém lesse
superficialmente, e ficasse zangado. Mas eu não temo reacções negativas. Se
elas vierem, não me perturbam. Não escrevi o livro para receber louvores,
escrevi-o por amor a jovens escritores, que nem conheço, e por amor à
literatura moçambicana. Estou certo de que estes escritores aqui são adultos,
responsáveis, capazes de discernir. E todos eles têm, agora, a certeza de que o
seu livro foi lido, por alguém que tem algum conhecimento disto e daquilo, e
que dedicou grande parte do seu tempo a fazê-los conhecer e estimar a um
público cada vez maior. Se algum deles se voltasse contra mim, o problema seria
dele e não meu! Eu aconselhá-lo-ia a gritar baixinho, para não se fazer ouvir
por algum dos que falam de mediocridade!
Soletras: Parece que há uma pequena confusão
entre os escritores mais velhos e os mais novos. Há quem chegue a dizer que a
literatura produzida pelos jovens é medíocre. Em que lado da querela o senhor
está?
P. Ferreira: No prefácio do livro, digo que não tenho
autoridade para estabelecer a fronteira entre os escritores mais velhos e os
mais novos. Mas aos que se consideram mais velhos, eu leio-os, aprecio-os e já
publiquei recensões sobre eles. E agora virei-me também para os mais novos. A
palavra medíocre não aparece nem podia aparecer no
livro, porque se eu achasse medíocres estes escritores, nem me dava ao trabalho
de os ler. O termo, para a minha sensibilidade, é pesado. Quando chego a
usá-lo, quero dizer que a coisa já está mesmo feia. Mas eu imagino que os mais
velhos, quando dizem isso da literatura jovem, só querem dizer que ela não tem
a qualidade da deles. Mas eles também já passaram por esta fase, só que não
publicaram tão depressa. Quem publica depressa, arrisca-se a ser considerado
medíocre. Entretanto, como sói dizer-se, nesta jovem literatura, há madeira
para santo ou pano para mangas. No fundo, o que eu procuro «pregar» é que estão
aqui uns jovens escritores, que precisam de carinho e incentivo. Eu, um padre
de 76 anos, bem mais velho do que alguns dos escritores “consagrados”, dediquei
grande parte do pouco tempo que tenho, para os ler, com o cuidado, que este
livro manifesta. E valeu a pena.
Soletras: Estando os escritores mais velhos a
controlar os grandes prémios literários, há possibilidade de algum deles ser
atribuído a um jovem?
P. Ferreira: Acho que, em todo o mundo, os prémios literários não são completamente
isentos, têm sempre interesses escondidos. Até o próprio Prémio Nobel é
atribuído à mistura com certos interesses, com muitas políticas metidas aí
dentro. Esses prémios passam por um crivo, em que há sempre furos. Portanto,
não me admira que haja aspectos menos recomendáveis, nos nossos concursos
literários. Do grupo destes escritores, que estão no livro, algum poderia ser
distinguido em grandes prémios nacionais. E, afinal, até foi! Haja pessoas que
os leiam! Pode acontecer que, por vezes, os júris cheguem a atribuir prémios,
sem terem lido todos os livros concorrentes, ou os terem lido sem a devida
profundidade. Os prémios estão condicionados pelos que os patrocinam, e pelos
que julgam os livros. E há sempre interesses metidos, ocultos muitas vezes. Mas
também não me admira que alguns concursos terminem sem vencedores, como o que
foi noticiado, na edição passada da revista Soletras. Não acho bem que se faça
alarido, quando um concurso termina sem vencedores.
Soletras: Dito isto, acha que a objectividade
e transparência são aspectos de difícil alcance, em prémios literários?
P. Ferreira: A objectividade é sempre difícil. É mesmo
difícil o júri acertar completamente num livro. Pode não acertar, por defeito
seu. E, mesmo acertando, nem todos os concorrentes concordarão, pois qualquer
um, que escreva um livro, tende a pensar que o seu será o melhor. De qualquer
forma, concordo com o escritor Alex Dau, que disse [em entrevista à Soletras]:
em Moçambique devíamos ter uma academia de artes e letras, que deveria ser
responsável pela organização de prémios literários, a bem da transparência. E
deveria diversificar-se ou alargar-se o corpo de jurados, passando a incluir
jornalistas culturais, académicos, docentes universitários, etc,. Pessoas que
conheçam verdadeiramente a literatura moçambicana.
Soletras: Mudando de assunto: na sua opinião,
qual é o papel que os nossos escritores devem ter para com a sociedade? Devem
ter um comprometimento com ela?
P. Ferreira: A melhor resposta deu-a Mia Couto, há pouco,
aquando do seu doutoramento honoris
causa. Ele disse que os
escritores podem ter uma influência, na construção dos valores éticos. Eu
confesso a minha admiração e estima por alguns jovens apresentados neste livro.
Pois apresentam grande preocupação com os problemas sociais e éticos. As
entrevistas deles publicadas neste livro, dão disso um animador testemunho.
Eles querem contribuir para uma sociedade melhor. Por isso, alegro-me com o que
disse Mia Couto. E eu, como padre, sinto que faz parte da minha missão
acompanhar estes jovens escritores. Alguns deles até parecem tão moralistas
como literatos.
Soletras: Alguma coisa, que não lhe
perguntamos?
P. Ferreira: Gostaria que outros se dessem ao trabalho, a
que me dei eu: ler, com toda a atenção, e, de caneta e papel, ir anotando tudo.
Não leiam assim por cima das brasas, para não darem depois opiniões
superficiais. A minha opinião pode ser até má, mas superficial ela não é,
porque me esforcei por entrar em cheio nos livros. Era bom que houvesse mais
críticos, e é isso que estes escritores pedem e merecem. Eu gostaria que o
livro se vendesse, não para eu arranjar dinheiro, mas por amor desses escritores
que estão aí dentro. Quanto mais gente os conhecer e animar, mais
possibilidades há de o nome de Moçambique ir para a frente. Mais jovens
escritores moçambicanos serão conhecidos e terão voz, dentro da literatura ou
da cultura moçambicana.

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