sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

“A literatura depende também dos leitores, que estão a diminuir”


Margarida Joaquim é uma jovem escritora beirense, que venceu o “Prémio Karingana Wa Karingana”, em 2012, cujo júri foi presidido pelo conceituado escritor Mia Couto. O prémio consistiu na atribuição de uma bolsa de estudos no ensino superior. Actualmente, a escritora encontra-se em Portugal a frequentar o curso de Ciências de Comunicação na Universidade do Minho.
Apesar da distância espacial, no gozo das vantagens proporcionadas pelas tecnológicas de informação e comunicação, a Soletras galgou quilómetros e milhas de modo a trazê-la ao seu povo e à sua terra, através duma entrevista.

Revista Soletras: Margarida, de repente saiu do silêncio e entrou no “barulho” literário, ou seja, do anonimato para a ribalta. Diz-nos quem mesmo é Margarida Joaquim?
Margarida Joaquim: Sou filha única de um contabilista e de uma professora, natural da cidade da Beira de onde saí aos 17 anos de idade apenas para fazer o curso superior de jornalismo, em Maputo. Desde pequena tive os meus sonhos traçados e, com a ajuda dos meus pais, que acreditaram que podia concretizá-los, entrei no ensino superior, primeiro na UEM e depois na Universidade do Minho, em Portugal.
Sou amante de animais; na Beira tenho um cágado, que é um companheiro indispensável quando decido escrever sobre alguma coisa.
A paixão pela comunicação surgiu-me aos 8 anos, ao integrar o clube dos apresentadores dos programas infantis na Rádio Moçambique, delegação da Beira.
Quando terminei a 12ª classe, entrei para a UEM no curso de jornalismo, o qual frequentei apenas dois semestres, sempre com os olhos postos num futuro brilhante na área jornalística. A minha decisão pelo jornalismo foi um “ choque” para o meu pai. Mas tanto ele como a minha mãe sempre me apoiaram. Eles mantiveram igual apoio quando surgiu a oportunidade de me mudar para Portugal, embora pouco reticentes. Actualmente estudo Ciências da Comunicação na Universidade do Minho.

Soletras: Como e quando começa a ter queda pela escrita?
Margarida: Os meus pais sempre tiveram livros em casa e eu cresci lendo-os a todos, um a um. O primeiro livro de que me recordo ter lido é "Nós Matamos o Cão Tinhoso", de Luís Bernardo Honwana. Quando o lia mal percebia a história de tão pequena que era, mas sentia-me realizada por fazer parte daquele mundo da literatura, de certa forma. De tanto ler livros, não apenas literários como também educativos e até mesmo didácticos, percebi que queria, um dia, em algum lugar, fazer com que as pessoas lessem algo escrito por mim. O mundo literário era-me mágico e agradavelmente viciante, queria fazer parte dele de uma forma mais envolvente, como escritora.
A minha paixão pela literatura é, portanto, bastante antiga, vem desde os tempos em que aprendi a ler e comecei a passar tardes e noites a ler e reler os contos todos que havia nos livros de português. Depois, quando me dei conta que também podia gravar as minhas ideias em papel e que podia fazer tudo acontecer na escrita, já que na literatura não há fronteiras, a paixão e o interesse multiplicaram-se a ponto de não mais se esconderem dentro de mim e transbordarem para o papel.

Soletras: Quais foram os autores que mais leu e de que mais gosta?
Margarida: Os autores que mais li são todos moçambicanos. Gosto imenso de Mia Couto, de Luís Bernardo Honwana (tenho muita pena de ter apenas “O cão tinhoso”), de Calane da Silva e de Paulina Chiziane. Como não sou muito poética, poucas vezes li José Craveirinha, mas foram vezes bastante agradáveis.
Mia Couto é, sem sombra de dúvidas, o que mais li até hoje. Agrada-me a forma como ele brinca com as palavras e a magia que ele faz questão de colocar nas suas obras. Ele aproveita bastante a arte da escrita para ir além, em cada obra traz-nos histórias que, mesmo sendo romances têm um lado poético que chama pela inteligência do leitor, e quando os pontos todos se ligam (o que acontece sempre) a sensação de satisfação em quem o lê é das melhores possíveis.
Paulina Chiziane como romancista é muito boa. O melhor dela está, na minha opinião, na sua capacidade de pensar em histórias bonitas ou dramáticas, na base do que acontece no dia-a-dia e contá-las de uma forma envolvente, de tal modo que só se pára de ler uma obra sua quando se chega ao fim. Conta as suas histórias de uma forma bastante simples e usa a linguagem também do dia-a-dia, é perfeita para os jovens.
Como gosto muito de contos, já li o "Contos moçambicanos do vale do Zambeze", de Lourenço do Rosário. Gosto muito de ouvir as histórias tradicionais moçambicanas, que estão cheias de magia e carregadas de teor educativo, portanto, ler histórias do género é bastante agradável.

Soletras: Sabemos que concorreu à primeira edição do prémio literário “Karingana Wa Karingana”. O que a impulsionou a concorrer para este prémio?
Margarida: Em primeiro lugar, o que me fez concorrer foi a paixão pela escrita e pela literatura, sem sombra de dúvidas. O concurso pareceu-me bastante sério, até mesmo pelo seu jurado e pelo facto de ter contado com o apoio do Ministério da Educação. Acima de tudo, saber que teria de concorrer com jovens moçambicanos de todas as províncias e que tinham as mesmas paixões que eu, tornou o concurso um desafio muito aliciante. Sou uma pessoa que gosta de tentar, e concorrer pareceu-me, na altura, uma aventura que poderia se tornar muito proveitosa caso vencesse, e, graças a Deus, aconteceu. Foi como unir o útil ao agradável, caso não vencesse, algumas pessoas importantes teriam, ao menos, lido algo pensado por mim. Diverti-me escrevendo o texto e ganhei a minha bolsa de estudos.

Soletras: Do concurso sabemos que foi a grande vencedora! Como é que se sentiu quando soube da notícia?
Margarida: Foi tão bom saber que havia vencido que pensei que fosse uma paranóia da minha cabeça, ainda mais por ter sido informada pelo Mia Couto, alguém que tanto admirava (e admiro).
Quando percebi que era tudo real dei-me conta de que, afinal, alguma coisa de jeito havia feito nas noites em que ficara a escrever para o concurso, na companhia do meu cágado. Os sonhos, naquele mesmo momento, começaram a concretizar-se. Naquele momento ocorreu-me uma frase que havia ouvido de um amigo: Deus está de olho nos nossos sonhos. Tive a certeza absoluta de que era verdade. Pensei também em escrever uma crónica sobre a minha emoção naquele momento... mas depois a alegria fez-me esquecer da ideia no instante seguinte. E tenho, até hoje, pena de não tê-lo feito. Depois pedi a Mia Couto que ligasse aos meus pais para que tivessem certeza da notícia.

Soletras: Falemos do concurso. O concurso consistia em concluir um conto iniciado pelo renomado escritor Mia Couto. Não lhe foi difícil a tarefa, tendo em conta o estilo característico de Mia?
Margarida: Foi um pouco difícil. Como às vezes sou uma pessoa bastante distraída, especialmente quando é para ler coisas importantes, como regras, não havia percebido a parte em que era para continuar o texto inicial do Mia Couto. Fiz um conto originalmente meu, e quando estava quase na décima página voltei a ler o regulamento do concurso e percebi que estava a fazer tudo erradamente. Mas foi melhor assim, as iniciais de Mia Couto serviram, afinal, como guia para uma história de algo que ainda tem acontecido no nosso país: o abandono escolar por parte das raparigas por ordem dos pais ou encarregados. O meu texto original em nada tinha a ver com este tema e percebi que era importante tentar espelhar sobre algo que tem acontecido na nossa sociedade, ainda que agora pareça um assunto resolvido.
Mia devia ter noção que eram jovens com apenas o ensino secundário que estariam a concorrer, razão pela qual o texto era bastante simples e de fácil percepção. Com o tema que ele propunha se podiam criar mais mil histórias diferentes que seriam encaixadas à inicial. É claro que há lá o seu estilo característico, a própria disposição das palavras é característica, mas pelo menos se podia pensar em algo para continuar a história à nossa maneira e com o fim que desejássemos.

Soletras: Falemos da literatura moçambicana. Como avalia o estágio da mesma e, em particular, a jovem literatura?
Margarida: A nossa literatura, por si só, já é jovem, não há nada que tenha sido publicado e que os jovens não percebam, portanto, estamos bastante favorecidos porque o que temos é da nossa idade, não há obras de séculos passados que os jovens possam dizer não perceber.
Desta literatura que já é jovem, podemos distinguir os mais jovens, que infelizmente pouco se fazem perceber, não por não serem bons mas pela pouca divulgação dos seus trabalhos. É importante que os “grandes” comecem a ter uma empatia pelos escritores jovens, que serão os grandes escritores num futuro próximo.
No geral, Há muitos bons escritores em Moçambique, escuso-me de falar apenas de Mia Couto que venceu, no ano passado, o prémio Camões. Se dependesse do trabalho dos nossos escritores estaríamos num óptimo caminho. Mas a literatura depende também dos leitores, que estão a diminuir cada vez mais. Falo de Moçambique em particular, mas o problema é do mundo todo. Os jovens estão a ler cada vez menos, e pior é o facto de as crianças moçambicanas mal saberem ler. A internet, que deveria ser um forte aliado da sociedade na difusão e consumo de obras literárias, está a ser muito mal utilizada, está a marginalizar a sociedade mais jovem. Estamos em um nível em que grande parte dos estudantes finalistas do ensino secundário não têm nenhuma obra lida, nem moçambicana nem de um outro país qualquer.
Entretanto, não tenho pensamentos pessimistas com respeito ao futuro da literatura em Moçambique, bons escritores podem estar a formar-se e os que já são bons tornar-se-ão ainda melhores. Se daqui a alguns anos houver mais gente a ler e maior acessibilidade das obras originais (que ainda são caras para muitos), haverá uma maior difusão dos trabalhos literários – o que resultará numa maior internacionalização dos mesmos. Por hora a solução para os nossos problemas é a leitura, os aspirantes a escritores devem ler para aprender cada vez mais e os demais devem igualmente recorrer à leitura para se formarem como pessoas cultas e com mentes mais abertas.

Soletras: Quais são os seus projectos literários? Tenciona lançar um livro em breve?
Margarida: Pretendo sim lançar um livro. Não diria brevemente porque sinto que ainda devo amadurecer um pouco a minha técnica. Tenho muita coisa escrita que poderia se tornar num livro, mas não sinto que seja algo relevante a ponto de estar registado oficialmente e publicado para toda a gente ver. Com isso não quero dizer que não possa surgir em pouco tempo uma obra minha publicada, estou apenas a projectar tudo para que seja algo motivador e encorajador para o resto das pessoas que ainda escrevem escondidas, e que não tenha um “efeito-perverso”. (Redacção)

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