Cremildo da Cruz
Lucílio Manjate,
autor de “A legítima dor da dona Sebastião” (2013), “O Manifesto” (2006), “Os
Silêncios do Narrador” (2010), “O Contador de Palavras” (2012), entre outras
obras, é um jovem escritor moçambicano, de 33 anos de idade e professor na
Universidade Eduardo Mondlane, a maior instituição universitária do nosso país.
Desta maneira, propomo-nos a fazer uma breve leitura de uma das suas obras, “O
Contador de Palavras”, um livro de contos esplendorosos pela sua forma, conteúdo
e projecto de confecção. A nossa leitura propõe-se decorrer em torno do
saudosismo e da nostalgia presentes nesta narrativa.
Antes de avançarmos propriamente à leitura da obra
escolhida, julgamos necessário discutir um pouco sobre o saudosismo e a
nostalgia, como forma de iluminar a nossa abordagem.
O saudosismo (ou sentimentalismo) é um dos temas e
motivos centrais do romantismo, movimento literário francês que se expandiu
pelo resto do mundo no século XIX, procurando exaltar os sentidos e tudo quanto
fosse provocado pelo impulso. Assim, há em toda a obra romântica motivos
ligados à saudade (ou saudosismo), à tristeza, à nostalgia e à desilusão. Em
Portugal, o seu desenvolvimento deve-se à sociedade portuense Renascença
Portuguesa fundada por Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Teixeira de Pascoes e
Leonardo Coimbra (Coelho, 1997: 1005), como um movimento literário essencialmente
poético, posto em prática através do seu órgão oficial, a revista “A Águia”. O seu
principal mentor, o poeta Teixeira de Pascoes, definiu tal movimento como uma
“feição típica” da literatura portuguesa e da “alma nacional”. Na essência, o saudosismo
tem a “tendência para sobrestimar o passado” (Coelho, 2002: 930), fazendo com
que, muitas vezes, por não ser possível voltar a viver o passado, o saudosista desemboque
na desilusão, tristeza e melancolia (ou seja, na nostalgia). Por isso, podemos
inserir a actividade e o espírito saudosista na corrente literária denominada
Romantismo, cujas principais características apontam para o subjectivismo, o
sentimentalismo, o escapismo, etc. ou, como sintetiza muito bem Jacinto do
Prado Coelho apud Paz e Moniz (2004:197), quando define o saudosismo como “um neo-Romantismo
espiritualista e lusitanizante que se compraz em evocar tradições e em cantar a
terra portuguesa”. Na literatura (europeia) o saudosismo “é uma revolta
pacífica contra a Revolução Industrial”, que separou as pessoas da pureza da
Natureza (Vieira, 1999).
“O Contador de Palavras”, de Lucílio Manjate, é uma obra
bastante significativa no que diz respeito ao saudosismo e principalmente à
nostalgia das coisas passadas que, não raras vezes, são evocadas através da
memória. Através da metonímia, Lucílio traz-nos à consciência o drama de uma
população que vive agarrada ao passado, classificando-o como o melhor do que o
presente, não permitindo a si própria viver o presente com prazer nem projectar
o futuro com confiança e esperança: “…a sua morbidez física, paradoxal para a
idade jovem, era o efeito psicológico dessa esperança, desse medo que procura
adiar o tempo na distância” (conto O Tempo, p. 52). Esta passagem
textual, como vemos, aponta para o perigo que a fixação ao passado pode causar
à saúde humana, um individuo jovem-adulto pode acomodar a velhice por causa do
“efeito psicológico dessa esperança” de voltar a viver o passado, que,
entretanto, se mostra impossível de retornar. Isso leva o indivíduo,
sinedoquizado pela personagem do conto O Tempo, devido a essa
impossibilidade de retornar ao passado (à infância, aos tempos idos) exila-se
por causa da desilusão, tal como a passagem o atesta: “… o homem não mais quis
se aquietar, no entanto achando na vivenda familiar o único refúgio. E o
refúgio foi o tempo, e o tempo um templo: vezes sem conta perdeu o paladar que
desistiu de comer, perdendo o peso e o tamanho” (conto O Tempo, p. 52),
acabando numa depressão. Essa depressão cria também na nossa personagem, que
representa os saudosistas nostálgicos do país, delírios e até loucura: “Exilou-se
tanto que despiu a aparência, ficando nesse estado de pura inocência, a baba
escorrendo quando as noites fervorosas pipocavam memórias que balbuciavam os
prazeres da mulher, de ambos os gemidos, os sorrisos e o êxtase” (conto O
Tempo, p. 52).
Um outro conto significativo de Lucílio, o qual nos chama
à atenção para o saudosismo e a nostalgia é O Presente. A passagem
textual que se segue mostra-nos claramente o apego ao passado através de
objectos utilizados anteriormente:
Ido o tempo dessa herança colonial, o ritual da velha
Maria era o mesmo. Às primeiras horas da manhã, passava a mão pelo tempo
estático nos móveis das nacionalizações. Os velhos tapetes de Arraiolos, de
padrão floral, pelo chão da sala e do extenso corredor, que o engenheiro trouxera
pessoalmente de Lisboa e tivera muito gosto em oferecer à velha, depois de
dizer que sempre admirara o empenho com que os limpava: o aparador, a estante e
a mesa de mármore onde bastas vezes, à hora das refeições, repetiu para os
filhos aquele derradeiro momento do casal Fonseca e Pinto e outras historias…
(conto O Presente, p. 27).
Essas lembranças são a
maior melancolia da personagem principal do conto, simbolizando as pessoas
idosas que se recordam do passado com tristeza e amargura: “Sempre desligado, o
rádio era hoje a sua maior tristeza. Que a geleira não funcionasse, a velha não
se importava…”(conto O Presente, p. 28). E como resultado, a velha
também se exila na sua própria casa, “cultivando o isolamento”, evitando conversas
com os vizinhos e enclausurando-se.
Depois de 1992, a velha Maria sempre cultivou o
isolamento porque conversa tem que ser coisa comedida, mas o Lhambankulo de
hoje já não é o de ontem, as pessoas metem-se onde não cabem, engordam e
emagrecem conversas bisbilhoteiras, e isso apavora-a, não gosta. Por isso,
depois de idos ou exilados para o campo grande parte dos homens e mulheres do
seu tempo, a velha enclausurou-se. Tem as suas angústias, pois quase todos os
seus filhos lutaram e morreram na guerra que em 92 ainda pôde testemunhar, pelo
rádio, o término. Fatalidade é que depois do Acordo Geral de Paz o rádio
emudeceu. (conto O Presente, p. 28).
A nostalgia leva as pessoas, muitas vezes, à depressão,
ao delírio, à loucura e até à morte, tal como aconteceu com a velha do conto, a
sinedoquizante dos moçambicanos que sentem a falta dos tempos precedentes da
história do nosso país: “Tímida, a velha Maria assomou, enfim, a sala. O corpo
estremeceu. Os cabelos eriçaram-se. As lágrimas brotaram das órbitas cansadas.
A velha caiu. E morreu fulminada pelo encanto da voz que adiante, próximo à
janela que dava para a rua, um rádio difundia” (conta O Presente, p.
29).
Uma primeira marca peculiar que encontramos em “O
Contador de Palavras”, de Lucílio Manjate, é o apagamento do narrador, parcial
ou totalmente. Temos, por um lado, o escritor a falar directamente com o seu
leitor – o que designamos por apagamento parcial do narrador – e um diálogo
directo entre as personagens, sem momentos de pausa para a descrição, a
dissertação ou a narração dos acontecimentos – é o que apelidamos de apagamento
total do narrador.
No primeiro caso, o escritor afasta o papel do narrador
por si criado para, ele próprio, dirigir-se ao seu leitor, numa interacção
directa: “e o leitor imagine também o tamanho do cabelo, da barba, das unhas”
(conto O Tempo, p. 52).
Trata-se de um estilo bastante cultivado por Machado de
Assis, Fielding e Thackeray. Gomes (1976) sugere que Machado de Assis terá
aprendido de Fielding e Thackeray a preocupar-se com o leitor das suas obras
literárias, colocando-o numa posição de destaque dentro do enredo. Vejamos um
extracto: “A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de
descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas,
ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo” (Assis,
1979).
Esta demonstração de preocupação com o leitor dos seus
textos visa, entre outros objectivos, deixar o leitor à vontade, conduzi-lo ao
longo da história contada ou confirmar-lhe o pensamento: “Minha confirmação do
seu diabólico dom começou na bicha. Era enorme, esta. Quem vi lá não queira o
leitor imaginar. De estudantes a PCA‟s. De governadores distritais a empregados
domésticos…” (conto A Voz, p. 61). Como forma de acalmar o leitor, nas
suas preocupações com os feitos, bons e maus, Lucílio sossega-nos sobre os
danos psicológicos que eventualmente poderá causar com a narração de certos
factos e seus fautores: “Não batia em mulheres, mas nesse dia aprendi a
espancar. (…) Nem tão pouco não me importo, se a leitora que encontrar este
escrito não quiser me namorar…”(conto A Voz, p. 61). Lucílio Manjate
conduz o leitor dos seus textos através do uso da lógica quotidiana e das
expressões comummente conhecidas: “e o leitor sabe que em seguida é sempre
aquele olhar irónico, desafiador até, reclamando essa pueril e invulgar
manifestação de liberdade.” (conto De Imaginar Somente, p. 32).
Esta fala directa do escritor com o leitor, uma
característica bastante interessante nos escritos de Lucílio Manjate, por outro
lado, leva-nos a acreditar que ele valoriza a igualdade de direitos e
oportunidades entre homens e mulheres, através de usos vocativos distanciados
do machismo (ou feminismo) demonstrados em muitas situações da vida real dos
nossos dias. Ou seja, ele não pensou somente nos leitores (do sexo masculino),
evocando igualmente os consumidores dos seus escritos como “a leitora”, o que
nos remete mais uma vez à passagem que se segue: “Nem tão pouco não me importo,
se a leitora que encontrar este escrito não quiser me namorar…”(conto A Voz,
p. 61).
Acreditamos nós que, desta maneira, Lucílio encontra uma
forma espectacular e curiosa de transformar o leitor em uma das personagens das
narrativas. Tem-se, assim, para além das personagens identificáveis nos seus
contos, um leitor-personagem em A Voz, O Tempo e De Imaginar
Somente – alguns dos contos inseridos na obra O Contador de Palavras.
No segundo caso, temos o apagamento total do narrador,
visto que não há espaço para este fazer qualquer tipo de descrição do ambiente
e das personagens, nem para argumentar e defender/refutar ideias – a dissertação
– e muito menos para narrar os acontecimentos. O exemplo mais lúcido deste
fenómeno é o conto Dois Viúvos, um Aviso, um texto construído através de
um diálogo directo entre duas personagens, sem momentos de pausa, que
normalmente o escritor consagra ao narrador para descrever/narrar/dissertar na
narrativa. Em Dois Viúvos, Um Aviso somos dados a conhecer a história de
dois viúvos (um homem e uma mulher), já avançados em idade, que ficam horas a
fio a falar do futuro do seu recém-criado relacionamento amoroso:
Ai é, e quanto tempo quer demorar-se comigo?
Para sempre.
Eternamente? Eternamente não pode ser.
Porquê?
Não lhe posso contar.
Porquê?
Meu receio é que o senhor não suporte a notícia…
Não seja por isso, dê-me um aviso, mais trágico é o aviso: a notícia é uma
arma apontada, o aviso o projéctil na minha direcção.
E o senhor esquiva, por acaso, esse aviso?
Se me atingir, melhor, morro amando. Se não me atingir, pior, amo morrendo,
por isso prefiro o aviso e nem faço questão de me esquivar dele, desde que a
senhora se demore comigo, eternamente, nem que seja por um instante (Conto Dois
viúvos, um aviso, p. 46).
Uma segunda marca de Manjate que podemos apontar é a
condensação diegética, que se mostra como uma forma de narração em que não há
progressão nas fases da narrativa, fazendo com que o leitor se delicie da
descrição fascinante do espaço, da acção, das personagens e do tempo.
Referências
Assis, Machado de. Dom Casmurro. 9a. Ed., Ática,
São Paulo, 1979.
Coelho, António, Dicionário Actual da Língua
Portuguesa, Porto, Asa, 2002. Saudosismo é o “gosto ou tendência para
sobrestimar o passado”, p. 930.
Coelho, Jacinto do Prado, Dicionário de Literatura,
4 vol., Porto: Mário Figueirinhas, 1997.
Oliveira, Rosana Simões de, Teixeira de Pascoes e o
Saudosismo Português, Faculdade de letras e Artes, Lisboa. s/d. p. 49.
Paz, Olegário e Moniz, António, Dicionário Breve de
Termos Literários, 2 ed., Lisboa: Presença, 2004.
Vieira,
Alberto, História do Meio Ambiente: Guia Bibliográfico da Literatura,
Funchal, 1999.
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