sábado, 6 de dezembro de 2014

O Saudosismo e a Nostalgia: Uma visão interactiva entre escritor e leitor em “O Contador de Palavras” de Lucílio Manjate

 Cremildo da Cruz
Lucílio Manjate, autor de “A legítima dor da dona Sebastião” (2013), “O Manifesto” (2006), “Os Silêncios do Narrador” (2010), “O Contador de Palavras” (2012), entre outras obras, é um jovem escritor moçambicano, de 33 anos de idade e professor na Universidade Eduardo Mondlane, a maior instituição universitária do nosso país. Desta maneira, propomo-nos a fazer uma breve leitura de uma das suas obras, “O Contador de Palavras”, um livro de contos esplendorosos pela sua forma, conteúdo e projecto de confecção. A nossa leitura propõe-se decorrer em torno do saudosismo e da nostalgia presentes nesta narrativa.
Antes de avançarmos propriamente à leitura da obra escolhida, julgamos necessário discutir um pouco sobre o saudosismo e a nostalgia, como forma de iluminar a nossa abordagem.
O saudosismo (ou sentimentalismo) é um dos temas e motivos centrais do romantismo, movimento literário francês que se expandiu pelo resto do mundo no século XIX, procurando exaltar os sentidos e tudo quanto fosse provocado pelo impulso. Assim, há em toda a obra romântica motivos ligados à saudade (ou saudosismo), à tristeza, à nostalgia e à desilusão. Em Portugal, o seu desenvolvimento deve-se à sociedade portuense Renascença Portuguesa fundada por Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Teixeira de Pascoes e Leonardo Coimbra (Coelho, 1997: 1005), como um movimento literário essencialmente poético, posto em prática através do seu órgão oficial, a revista “A Águia”. O seu principal mentor, o poeta Teixeira de Pascoes, definiu tal movimento como uma “feição típica” da literatura portuguesa e da “alma nacional”. Na essência, o saudosismo tem a “tendência para sobrestimar o passado” (Coelho, 2002: 930), fazendo com que, muitas vezes, por não ser possível voltar a viver o passado, o saudosista desemboque na desilusão, tristeza e melancolia (ou seja, na nostalgia). Por isso, podemos inserir a actividade e o espírito saudosista na corrente literária denominada Romantismo, cujas principais características apontam para o subjectivismo, o sentimentalismo, o escapismo, etc. ou, como sintetiza muito bem Jacinto do Prado Coelho apud Paz e Moniz (2004:197), quando define o saudosismo como “um neo-Romantismo espiritualista e lusitanizante que se compraz em evocar tradições e em cantar a terra portuguesa”. Na literatura (europeia) o saudosismo “é uma revolta pacífica contra a Revolução Industrial”, que separou as pessoas da pureza da Natureza (Vieira, 1999).
“O Contador de Palavras”, de Lucílio Manjate, é uma obra bastante significativa no que diz respeito ao saudosismo e principalmente à nostalgia das coisas passadas que, não raras vezes, são evocadas através da memória. Através da metonímia, Lucílio traz-nos à consciência o drama de uma população que vive agarrada ao passado, classificando-o como o melhor do que o presente, não permitindo a si própria viver o presente com prazer nem projectar o futuro com confiança e esperança: “…a sua morbidez física, paradoxal para a idade jovem, era o efeito psicológico dessa esperança, desse medo que procura adiar o tempo na distância” (conto O Tempo, p. 52). Esta passagem textual, como vemos, aponta para o perigo que a fixação ao passado pode causar à saúde humana, um individuo jovem-adulto pode acomodar a velhice por causa do “efeito psicológico dessa esperança” de voltar a viver o passado, que, entretanto, se mostra impossível de retornar. Isso leva o indivíduo, sinedoquizado pela personagem do conto O Tempo, devido a essa impossibilidade de retornar ao passado (à infância, aos tempos idos) exila-se por causa da desilusão, tal como a passagem o atesta: “… o homem não mais quis se aquietar, no entanto achando na vivenda familiar o único refúgio. E o refúgio foi o tempo, e o tempo um templo: vezes sem conta perdeu o paladar que desistiu de comer, perdendo o peso e o tamanho” (conto O Tempo, p. 52), acabando numa depressão. Essa depressão cria também na nossa personagem, que representa os saudosistas nostálgicos do país, delírios e até loucura: “Exilou-se tanto que despiu a aparência, ficando nesse estado de pura inocência, a baba escorrendo quando as noites fervorosas pipocavam memórias que balbuciavam os prazeres da mulher, de ambos os gemidos, os sorrisos e o êxtase” (conto O Tempo, p. 52).
Um outro conto significativo de Lucílio, o qual nos chama à atenção para o saudosismo e a nostalgia é O Presente. A passagem textual que se segue mostra-nos claramente o apego ao passado através de objectos utilizados anteriormente:
Ido o tempo dessa herança colonial, o ritual da velha Maria era o mesmo. Às primeiras horas da manhã, passava a mão pelo tempo estático nos móveis das nacionalizações. Os velhos tapetes de Arraiolos, de padrão floral, pelo chão da sala e do extenso corredor, que o engenheiro trouxera pessoalmente de Lisboa e tivera muito gosto em oferecer à velha, depois de dizer que sempre admirara o empenho com que os limpava: o aparador, a estante e a mesa de mármore onde bastas vezes, à hora das refeições, repetiu para os filhos aquele derradeiro momento do casal Fonseca e Pinto e outras historias… (conto O Presente, p. 27).
Essas lembranças são a maior melancolia da personagem principal do conto, simbolizando as pessoas idosas que se recordam do passado com tristeza e amargura: “Sempre desligado, o rádio era hoje a sua maior tristeza. Que a geleira não funcionasse, a velha não se importava…”(conto O Presente, p. 28). E como resultado, a velha também se exila na sua própria casa, “cultivando o isolamento”, evitando conversas com os vizinhos e enclausurando-se.
Depois de 1992, a velha Maria sempre cultivou o isolamento porque conversa tem que ser coisa comedida, mas o Lhambankulo de hoje já não é o de ontem, as pessoas metem-se onde não cabem, engordam e emagrecem conversas bisbilhoteiras, e isso apavora-a, não gosta. Por isso, depois de idos ou exilados para o campo grande parte dos homens e mulheres do seu tempo, a velha enclausurou-se. Tem as suas angústias, pois quase todos os seus filhos lutaram e morreram na guerra que em 92 ainda pôde testemunhar, pelo rádio, o término. Fatalidade é que depois do Acordo Geral de Paz o rádio emudeceu. (conto O Presente, p. 28).
A nostalgia leva as pessoas, muitas vezes, à depressão, ao delírio, à loucura e até à morte, tal como aconteceu com a velha do conto, a sinedoquizante dos moçambicanos que sentem a falta dos tempos precedentes da história do nosso país: “Tímida, a velha Maria assomou, enfim, a sala. O corpo estremeceu. Os cabelos eriçaram-se. As lágrimas brotaram das órbitas cansadas. A velha caiu. E morreu fulminada pelo encanto da voz que adiante, próximo à janela que dava para a rua, um rádio difundia” (conta O Presente, p. 29).
Uma primeira marca peculiar que encontramos em “O Contador de Palavras”, de Lucílio Manjate, é o apagamento do narrador, parcial ou totalmente. Temos, por um lado, o escritor a falar directamente com o seu leitor – o que designamos por apagamento parcial do narrador – e um diálogo directo entre as personagens, sem momentos de pausa para a descrição, a dissertação ou a narração dos acontecimentos – é o que apelidamos de apagamento total do narrador.
No primeiro caso, o escritor afasta o papel do narrador por si criado para, ele próprio, dirigir-se ao seu leitor, numa interacção directa: “e o leitor imagine também o tamanho do cabelo, da barba, das unhas” (conto O Tempo, p. 52).
Trata-se de um estilo bastante cultivado por Machado de Assis, Fielding e Thackeray. Gomes (1976) sugere que Machado de Assis terá aprendido de Fielding e Thackeray a preocupar-se com o leitor das suas obras literárias, colocando-o numa posição de destaque dentro do enredo. Vejamos um extracto: “A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo” (Assis, 1979).
Esta demonstração de preocupação com o leitor dos seus textos visa, entre outros objectivos, deixar o leitor à vontade, conduzi-lo ao longo da história contada ou confirmar-lhe o pensamento: “Minha confirmação do seu diabólico dom começou na bicha. Era enorme, esta. Quem vi lá não queira o leitor imaginar. De estudantes a PCAs. De governadores distritais a empregados domésticos…” (conto A Voz, p. 61). Como forma de acalmar o leitor, nas suas preocupações com os feitos, bons e maus, Lucílio sossega-nos sobre os danos psicológicos que eventualmente poderá causar com a narração de certos factos e seus fautores: “Não batia em mulheres, mas nesse dia aprendi a espancar. (…) Nem tão pouco não me importo, se a leitora que encontrar este escrito não quiser me namorar…”(conto A Voz, p. 61). Lucílio Manjate conduz o leitor dos seus textos através do uso da lógica quotidiana e das expressões comummente conhecidas: “e o leitor sabe que em seguida é sempre aquele olhar irónico, desafiador até, reclamando essa pueril e invulgar manifestação de liberdade.” (conto De Imaginar Somente, p. 32).
Esta fala directa do escritor com o leitor, uma característica bastante interessante nos escritos de Lucílio Manjate, por outro lado, leva-nos a acreditar que ele valoriza a igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, através de usos vocativos distanciados do machismo (ou feminismo) demonstrados em muitas situações da vida real dos nossos dias. Ou seja, ele não pensou somente nos leitores (do sexo masculino), evocando igualmente os consumidores dos seus escritos como “a leitora”, o que nos remete mais uma vez à passagem que se segue: “Nem tão pouco não me importo, se a leitora que encontrar este escrito não quiser me namorar…”(conto A Voz, p. 61).
Acreditamos nós que, desta maneira, Lucílio encontra uma forma espectacular e curiosa de transformar o leitor em uma das personagens das narrativas. Tem-se, assim, para além das personagens identificáveis nos seus contos, um leitor-personagem em A Voz, O Tempo e De Imaginar Somente – alguns dos contos inseridos na obra O Contador de Palavras.
No segundo caso, temos o apagamento total do narrador, visto que não há espaço para este fazer qualquer tipo de descrição do ambiente e das personagens, nem para argumentar e defender/refutar ideias – a dissertação – e muito menos para narrar os acontecimentos. O exemplo mais lúcido deste fenómeno é o conto Dois Viúvos, um Aviso, um texto construído através de um diálogo directo entre duas personagens, sem momentos de pausa, que normalmente o escritor consagra ao narrador para descrever/narrar/dissertar na narrativa. Em Dois Viúvos, Um Aviso somos dados a conhecer a história de dois viúvos (um homem e uma mulher), já avançados em idade, que ficam horas a fio a falar do futuro do seu recém-criado relacionamento amoroso:
Ai é, e quanto tempo quer demorar-se comigo?
Para sempre.
Eternamente? Eternamente não pode ser.
Porquê?
Não lhe posso contar.
Porquê?
Meu receio é que o senhor não suporte a notícia…
Não seja por isso, dê-me um aviso, mais trágico é o aviso: a notícia é uma arma apontada, o aviso o projéctil na minha direcção.
E o senhor esquiva, por acaso, esse aviso?
Se me atingir, melhor, morro amando. Se não me atingir, pior, amo morrendo, por isso prefiro o aviso e nem faço questão de me esquivar dele, desde que a senhora se demore comigo, eternamente, nem que seja por um instante (Conto Dois viúvos, um aviso, p. 46).
Uma segunda marca de Manjate que podemos apontar é a condensação diegética, que se mostra como uma forma de narração em que não há progressão nas fases da narrativa, fazendo com que o leitor se delicie da descrição fascinante do espaço, da acção, das personagens e do tempo.
Referências
Assis, Machado de. Dom Casmurro. 9a. Ed., Ática, São Paulo, 1979.
Coelho, António, Dicionário Actual da Língua Portuguesa, Porto, Asa, 2002. Saudosismo é o “gosto ou tendência para sobrestimar o passado”, p. 930.
Coelho, Jacinto do Prado, Dicionário de Literatura, 4 vol., Porto: Mário Figueirinhas, 1997.
Oliveira, Rosana Simões de, Teixeira de Pascoes e o Saudosismo Português, Faculdade de letras e Artes, Lisboa. s/d. p. 49.
Paz, Olegário e Moniz, António, Dicionário Breve de Termos Literários, 2 ed., Lisboa: Presença, 2004.
Vieira, Alberto, História do Meio Ambiente: Guia Bibliográfico da Literatura, Funchal, 1999.

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