sábado, 6 de dezembro de 2014

“Nós estamos a construir uma sociedade oca”



Enganou-se redondamente quem ousou pensar que o único escritor publicado, de que a Beira, actualmente, dispõe como residente, é Adelino Timóteo. Há mais um outro, chama-se Benjamim Tomás, “pai biológico” do livro “Espelho dos meus caminhos”, obra distinguida na “Gala Mérito Cidade da Beira 2012”.

A Soletras, na sua declarada missão de “busca e captura de escritores a monte”, decidiu navegar as águas do Chiveve para dar aos aposentos de Benjamim, e encontrou-o no seu Esturro, cheio de vida e nutrido de invejáveis pensamentos, parte dos quais lhe roubou esta revista, para preencher as suas páginas, enquanto distraía o escritor com algumas perguntas.

Soletras: Escritor Benjamim Tomás, gostaríamos que nos descrevesse um pouco o seu percurso literário.
Benjamim: A literatura, para mim, é vivência, não só cultural, mas também uma forma particular de viver. Nalgum momento, nós os escritores, reparamos para a escrita como uma observação do mundo e exposição daquilo que sentimos e percebemos a partir da nossa observação deste mundo. São outros olhos, é outra maneira de ver as coisas.
Na verdade, o meu percurso literário começa depois de ler uma obra de José Saramago, o “Prémio Nobel da Literatura em 1998”. Depois, com Pablo Neruda, com quem fui conhecendo um pouco mais a literatura.
Uma outra pessoa que também foi bastante influente para a minha escrita foi o Heliodoro Baptista, o já falecido poeta beirense, que tinha uma forma bastante peculiar, isto no sentido de estar e ser, foi-me uma influência bastante importante. Eu conheci o Heliodoro, a partir de Armando Artur, o actual Ministro da Cultura de Moçambique, que é uma pessoa amiga e familiar, graças a uma apresentação feita pelo escritor e poeta Adelino Timóteo. Portanto, foram esses três escritores que me influenciaram, o Heliodoro Baptista, o José Saramago e o Pablo. E levei desses escritores a força da comunicação e da expressão literária. Esses fazem parte, de facto, daqueles que constroem o meu mundo literário.
Igualmente, posso destacar o papel da família, pois a família como família, mais contribui para a literatura. Mais nos fazem fortes para o crescimento literário, no sentido de expor aquilo que são os nossos sentimentos. Em alguns momentos, sobretudo nos não muito bons da vida, a família que eu tenho (de jovens, só de irmãos mais novos), teve alguma influência. Agora, já na outra obra, um romance ainda no prelo, falo muito da minha mãe, que teve grande influência na minha vida, tanto como escritor quanto pessoa.

Soletras: Sabemos que publicou a sua primeira obra “Espelho dos meus caminhos” pela AEMO, em 2009. Qual foi a sua experiência como estreante, sobretudo por ser de fora da capital do país?
O desafio foi maior, na medida em que as oportunidades estão muito centralizadas. As oportunidades para quase todos os ramos de actividades estão viradas para a capital do país, o que nalgum momento me dificultou o projecto da publicação, mas graças a Deus os Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), sobretudo na pessoa de Joaquim Veríssimo, o actual Governador da Província da Zambézia, foram bastante exemplares no tocante à responsabilidade social. Joaquim Veríssimo foi quem influenciou para que a obra tivesse pés para andar, falo do patrocínio da impressão da obra.

Soletras: Analisemos o texto. Há quem diz que o texto literário é um refúgio, é para pedir socorro, ou condição para viver, segundo Mia Couto, que se diz escrevivente. Para o seu caso, qual é o alcance do texto literário? 
Benjamim: Para mim, é um grande refúgio e acho que para qualquer escritor a literatura é um refúgio bastante grande. Muitas vezes, nós encontramos a expressão ou comunicação certa numa outra língua trazida pelo mundo diferente do nosso, que é o mundo literário, do papel, da escrita, e convoca, muitas vezes, o sentimento de que temos que expressar os momentos difíceis por que a sociedade passa, também as boas coisas, e geralmente a literatura vinca-se com a realidade social, mas utopizando-se com as palavras, que as considero divinas, que a outra sociedade obscura consegue-nos trazer a essa mão.

Soletras: O seu livro é intitulado “Espelho dos meus caminhos”. Confesse-nos, qual é esse espelho e para onde dão esses caminhos?
Benjamim: Este livro, primeiro retrata parte da minha vida, parto da comunicação de um menino que teve dificuldades na sua infância. Mas também retrata partes sociais, como o apagão que se tem nalgum momento de muitas figuras que construíram a literatura e não conseguiram aparecer e ficar patentes na parte histórico-social. Ainda, o livro retrata a mítica do amor, das ilusões, das desilusões, sonhos e da construção social.

Soletras: Há uma razão especial que faz com que as figuras fiquem, depois de tanto esforço empreendido, “soterradas”?
Benjamim: Há, para uns casos, algumas razões, mas para outros o silêncio sobre eles é natural. Eu falo, no “Espelho dos meus caminhos”, de um dos escritores que é o Heliodoro, porque ele é uma das referências na escrita, particularmente em Sofala. A escrita dele tem uma tipicidade e seu fundamento bastante tocante na alma. E é preciso compreender que, na escrita, o Heliodoro traz uma outra visão das coisas. Eu me recordo, num dia, quando conversava com o próprio Heliodoro e Armando Artur e este disse-me que o Heliodoro era um escritor fenomenal. Mas hoje nós percebemos que o Heliodoro não é uma figura que a sociedade destaca, refiro-me às instituições de direito para vincar a figura deste escritor indelével. Aliás, estamos no Estado novo, em que precisamos de trazer algumas pessoas que vão patentear a nossa sociedade, que vão ficar como referências sociais. Dessas referências, acredito eu, que o Heliodoro é uma delas. Existem outras referências, na música, entre outras, que deviam ficar.

Soletras: Do seu livro de poemas “Espelho dos meus caminhos”, há textos que o marcam muito particularmente a si?
Benjamim: Alguns marcam-me. Por exemplo, “a infância que não foi a minha”, marca-me também este que eu dedico ao Heliodoro. Em “A infância que não foi a minha” eu utopizo uma infância, a qual não foi minha, mas eu queria que fosse. Mas eu não consegui ter essa infância. Então eu pego na utopia para construir essa infância.

Soletras: O livro foi lançado em 2009. Tem a memória da recepção do livro nessa altura?
Benjamim: O livro simplesmente esgotou, isto logo na primeira edição e nos primeiros meses do lançamento. E para mim, isto é sinónimo de que o livro foi bem recebido e o público foi-me exemplar na recepção do livro, pois sabemos que a nossa sociedade não tem sido aberta à literatura, sobretudo aos novos escritores. Portanto, acho o seguinte: se o livro já não existe no mercado é porque a sociedade o consumiu, mesmo sendo de um escritor iniciante.

Soletras: Gostaríamos que nos fizesse a análise radiográfica da literatura em Moçambique, os seus avanços e estagnações.
Benjamim: Na verdade, o dinamismo social atravessa aquilo que são as nossas vontades, e a nossa vontade é que a literatura estivesse mais patente. Infelizmente temos algumas situações não muito boas, como o baixo consumo literário. As pessoas não lêem, muitos moçambicanos não gostam de ler. Noutro dia, lembro-me que estava numa palestra e o filósofo/escritor Severino Nguenha disse que Moçambique poderia, eventualmente, ter prémio [se houvesse esse prémio] da UNESCO por ser um país que estava a formar doutores sem ter nunca lido, pelo menos, um livro. É bastante interessante esta constatação, pois estamos a formar doutores com fraca capacidade de leitura.
Está-se apenas a distribuir diplomas para se ganhar salários. E não estamos muito preocupados com a capacitação e formação, aspectos bastante importantes. É mais importante ainda perceber que existem escritores, jovens ainda, dos quais alguns conheço pessoalmente, com grandes capacidades, que podem estar na lista de grandes escritores que este país já produziu. Todavia, neste estado, a literatura vai andando mas devia estar melhor, devíamos ler melhor.
Os docentes ou toda a sociedade em si é culpada, aqui não podemos apontar os dedos a ninguém. Nós estamos a construir uma sociedade oca, com lacunas bastante graves. Portanto, sem leitores, só com pessoas interessadas em ganhar dinheiro, não se preocupando em ter habilidades das coisas. Por essa razão, muitas pessoas, que até têm a possibilidade de ganhar alguma habilidade para a literatura não a conseguem porque não lêem. É preciso exercitar, é preciso treinar. As pessoas vão para a escola só para terem notas e não para terem o conhecimento.

Soletras: Como é que vê a relação entre os velhos escritores e os mais novos? É sã, há transmissão de experiencias, os mais novos são receptivos?
Benjamim: Existe algo que eu vou veicular, aspecto bastante importante, mas antes acho que a relação é boa. Nós tivemos a primeira linha de escritores, que nasceu numa fase em que o embrião das ideias era virado para as liberdades, para aquilo que são o reconhecimento e as independências, entre outros aspectos. E essa literatura estava, de facto, virada para as liberdades. Este foi um momento, em que todo aquele que fosse escritor estava no avanço para a construção de uma sociedade igualitária. Mas hoje estamos numa fase da literatura em que não se repara para a construção deste espaço, repara-se para a construção de aspectos de beleza, entre outros aspectos. Já não se repara assim para a crítica social como forma de construção, o reivindicativismo, já não existe. A crítica social ficou apagada, e numa sociedade em que existem críticos há também um desenvolvimento, uma construção ideológica bastante forte. Mas numa sociedade em que a crítica é apagada, ou vista como sinónimo de erro ou de contrabando, o desenvolvimento pode não existir, digo o desenvolvimento psicológico, científico, social e político, determinante para o desenvolvimento económico.
Existe uma comunicação muito aprofundada e bonita. Por acaso, uma das pessoas com quem tive, vinculativamente, boa relação foi o Armando Artur, uma pessoa muito boa, que bem se abriu para o lançamento da minha obra. A outra pessoa é Adelino Timóteo, embora não sendo um dos escritores antigos, acha-o mediano, mas hoje pelo volume das suas obras compara-se aos escritores antigos. Ele é um dos escritores que escreve bem e deve estar a vender muito em Moçambique. Esses dois trabalharam comigo. Portanto, eu acho que existe uma boa relação entre a velha guarda e o novo grupo de escritores.
Soletras: Gostaria de dizer algo que não lhe perguntamos?
Benjamim: A escrita é aquela coisa que nós todos sentimos e percebemos e que deve ter mais atenção. Mas a nossa sociedade a discrimina, enquanto ela é a mais importante tarefa que essa sociedade deve abraçar. Veja-se que olhamos para a música com todo o apoio possível, os músicos são muito apoiados, assistimos às grandes empresas nacionais totalmente atentas aos músicos. Para a escrita, poucos apoios são dirigidos, mas é esta que constrói a sociedade, a par de outras. A escrita é caminho, uma luz de construção intelectual muito forte. Portanto, penso que as pessoas deviam olhar para a literatura como forma de construção da sociedade, de forma ainda melhor.

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