sábado, 10 de outubro de 2015

Evangelho “literário” segundo Kuphaluxa




Com o objectivo de celebrar a universalidade da literatura, tem lugar, entre os dias 23 e 25 de Outubro, na cidade da Matola, província de Maputo, o Festival Literatas, promovido pelo Movimento Literário Kuphaluxa, uma agremiação de jovens escritores fundadores da revista literária electrónica denominada Literatas.
O evento, a decorrer sob o lema “Memória: um museu contemporâneo”, colocará, no mesmo palco, diversas entidades, entre escritores, músicos, leitores e admiradores de todo o tipo de arte. Trata-se, no concreto, de um conjunto de actividades, com destaque para debates com escritores, música ao vivo, gastronomia e feira de livros.
Em entrevista exclusiva à Soletras, o secretário-geral do Kuphaluxa, Eduardo Quive, deu a conhecer que o seu movimento pretende, na verdade, mudar os paradigmas de contacto entre o leitor e o livro e conquistar novos e diferentes públicos, através de uma série de actividades lúdicas, tendo a literatura como o centro de tudo.
Mais adiante, Quive explicou que o festival enquadra-se num dos principais pilares do movimento, que é o “apoio, promoção e incentivo à leitura”, daí a promoção do evento que visa levar as pessoas a gostarem da leitura. “O que é um livro, quem está por detrás dele e o que faz o livro é a primeira coisa que as pessoas devem saber. Antes, é preciso explicar às pessoas o que é livro; e a literatura não se faz apenas pelo livro, pode ser por meio de dança, gastronomia ou música” – enfatizou a nossa fonte, para quem uma sociedade inteira é literatura e pode ser lida.
Notadamente convencido com a ideia, o activista literário acredita que a massificação da literatura é possível se as pessoas forem encorajadas e estiverem envolvidas em qualquer tipo de arte que pratiquem e apreciem, mesmo as que acham que o livro é para os outros, desde que se promovam eventos do género dentro e fora das zonas urbanas, procurando atingir um público cada vez maior e que normalmente não tem acesso a uma feira de livro ou livraria.
Respondendo a uma pergunta da Soletras sobre como as actividade programadas se relacionam com a literatura, podendo, de alguma forma, influenciar os participantes a gostarem desta arte, Quive esclareceu que todas as actividades ligadas à encenação, ao canto e à dança são primariamente escritas e só depois representadas, cantadas e coreografadas, respectivamente, pelo que entende haver toda a possibilidade de o festival ser de grande impacto para o público não leitor, tornando-o, assim, no amante da literatura.

No evento de três dias, o Movimento Literário Kuphaluxa conta com a participação do Conselho Municipal da Matola e da Associação Cultural Kutlanga – seus principais parceiros. (Cremildo da Cruz)

“Muito do versilibrismo, que anda por aí, não vale nada”

É um homem humilde, mas também verdadeiro. Aliás, a veracidade é um dos requintes da humildade. E este princípio é observado à risca pelo nosso entrevistado, desta edição, sempre que lê um livro de literatura. O seu nome é Manuel Serra Ferreira. E é padre. Então que o chamemos apenas: Padre Ferreira.

É padre jesuíta português, mas foi na Itália onde a sua alma se aproximou, cada vez mais, às artes. Por interesse próprio, estudou quase tudo quanto fosse obra artística. Mas é a literatura que ocupou a maior parte do seu tempo. Prova disso, é que chegado a Moçambique decidiu logo seguir várias gerações de escritores. E sobre a mais recente vaga de escritores moçambicanos, ele escreveu um livro, intitulado “Um presente do futuro: os jovens da literatura moçambicana por volta de 2015”. E usamos este livro, a ser lançado em Outubro do corrente ano, como pretexto para entrevistar o Padre. Leia a entrevista nas páginas que se seguem! 



Soletras: O senhor vai lançar um livro sobre os jovens escritores moçambicanos. É português, e interessa-se pela literatura moçambicana. Quer explicar…
Padre Ferreira: Interesso-me pela literatura, desde jovem, já lá vão muitos anos. Sempre gostei de ler livros literários e sobre literatura. Li sobretudo as literaturas grega, latina, francesa, russa, e outras. Antes de vir para Moçambique, li muita poesia. Tinha uma alma de artista, e interessava-me por tudo o que fosse arte. Aliás, formei-me na Itália, terra de artes e artistas.
Ao chegar a Moçambique (1964), interessei-me logo pela literatura moçambicana. E li Rui Knopfli, José Craveirinha, Noémia de Sousa. Numa segunda fase, li Mia Couto e outros autores da mesma geração, como Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, que era muito meu amigo. Já na Beira (onde resido), lia Heliodoro Baptista, meu grande amigo, e colaborei com Bahassane Adamdgy, que tinha começado uma carreira muito boa, mas, infelizmente, cedo faleceu. Depois, comecei a interessar-me pelos escritores mais novos, de quem se trata neste livro (Um presente do futuro). Justamente quando conheci o Dany Wambire, que está nas origens de todo este livro. Confesso que, se o não tivesse conhecido a ele e à revista Soletras, nada disto seria materializado.
Soletras: Está em Moçambique, desde 1964. Como caracteriza a nossa literatura, nos seus diferentes períodos?
P. Ferreira: Quem responderia muito bem a essa pergunta seria o Professor Dr. Francisco Noa, outro que me honra com a sua amizade!                                                                                    
Quanto aos mais antigos, acho que um dos melhores poetas moçambicanos foi Rui de Noronha. Foi talvez o único a conseguir compor sonetos bem-feitos. Inspirou-se no grande poeta português Antero de Quental. Terá sido um dos escritores moçambicanos a ter influência da literatura de Portugal. Depois, vieram outros, que também receberam influência da mesma literatura. Mas deve-se reconhecer que, à medida que nos afastamos da época colonial, os escritores moçambicanos vão-se libertando da influência da literatura portuguesa. E acredito que, nos próximos tempos, a literatura moçambicana vai dever menos à portuguesa do que à brasileira. Aliás, como observou o angolano Agualusa, um dos maiores escritores moçambicanos, Mia Couto, bebeu do escritor brasileiro Guimarães Rosa. Mas noto nos escritores moçambicanos um progressivo afastamento, próprio de quem procura afirmar-se e ter sua originalidade e autonomia.
Soletras: No seu livro, ocupou-se com obras de 19 jovens escritores moçambicanos pouco conhecidos, contrariando a tendência de alguns críticos nossos, que se têm apegado aos consagrados. Quais são os seus objectivos?
P. Ferreira: Ao escrever este livro, o meu primeiro objectivo era este: escrever um livro, que não fosse meu! Acho que consegui! Note que, na capa do livro, o meu nome está tão ofuscado, e é pelo fulgor dos jovens escritores, que estão aqui dentro! Depois, consegui aliar os meus comentários às entrevistas que eles mesmos cederam à revista Soletras. Deste modo, não fui tanto eu a falar deles, mas foram sobretudo eles a apresentar-se a si mesmos, de forma muito rica. Aqui, estes escritores têm a oportunidade de se lerem um ao outro, numa espécie de partilha de dificuldades.
Soletras: Falou de partilha de dificuldades? Que dificuldades são essas?
P. Ferreira: São, no geral, dificuldades de meios. Uns, por falta de meios financeiros, tiveram dificuldades para publicar os seus livros, mas, com muito sacrifício, acabaram conseguindo. Outros, carecem ainda de algumas ferramentas linguísticas e gramaticais, para melhor escreverem. Mas os problemas de gramática, com que deparei, desde os primeiros que li, não me fizeram desistir do projecto de fazer conhecer estes jovens escritores, e fazer ver claramente que a literatura moçambicana não se encerrou, e tem um futuro garantido. Estes escritores novos, mesmo que algum não esteja ainda bem preparado, para publicar livros, o facto é que já os publica. E é bom que o façam, mesmo com lacunas. Estou convencido de que vale a pena investir nestes novos, porque estão cheios de boa vontade, e com muito a revelar. O talento, que realmente têm, não pode ser ocultado pela eventual pobreza de expressão. Que não depende deles, mas sim das escolas, em que foram formados, que, já não são as mesmas, em que se formaram os escritores do período anterior.
Soletras: A propósito das dificuldades de língua, diz, num dos parágrafos do livro, que Luís Bernardo Honwana, quando publicou “Nós matámos o Cão-Tinhoso”, sabia o português melhor do que alguns escritores de hoje. Regredimos tanto assim? A que se deve isso?          
P. Ferreira: Penso que o texto de Luís Bernardo terá passado por um bom revisor. Não creio que aquela perfeição literária seja trabalho exclusivo dele. De resto, comparo o português falado então com o falado agora. Naquela época, eram menos os que falavam português mas dominavam-no melhor. Hoje, são mais a falá-lo, mas com menos domínio. Aumentou a quantidade, baixou a qualidade. É uma espécie de lei.
Soletras: O senhor parece ter aversão ao versilibrismo. Ou seja, acha que os poetas devem estagiar no verso medido, antes de chegarem ao versilibrismo. Explique-nos um pouco…
P. Ferreira: Mia Couto é o mestre em neologismos; e alguns destes escritores, como o Dany Wambire, seguem esta linha. Quando encontro, nalgum texto, um destes neologismos, bem pensado e criado, não me preocupo em ir ver se a palavra vem ou não no dicionário. Mas segundo as regras, só o escritor de créditos firmados tinha autorização para criar neologismos. Vindo à poesia, penso que o versilibrismo é bom, contanto que seja fruto do trabalho aturado de quem passou pela disciplina do verso medido. Porque senão o poeta põe-se a escrever, como se fosse inspirado por uma musa, e não há musa nenhuma a inspirá-lo. É preciso que ele escreva, como deve ser, segundo as leis, que tem toda a arte. Muito do versilibrismo, que anda por aí, não vale nada. Assim como também há poemas com versos bem medidos, mas que, logo à partida, vê-se que não há ali poesia nenhuma.
Em resumo: para escrever um romance, o escritor deve estagiar no conto, como estão a fazer alguns dos escritores apresentados no livro. Escrever um romance exige um grande esforço, e acho que se não devem queimar etapas. Quem se atreve logo a escrever um romance, geralmente não faz grande coisa. E na poesia, o poeta, antes de avançar para o versilibrismo, deveria estagiar na poesia de verso medido.
Soletras: Mais algum problema que constata nestes jovens?
P. Ferreira: Parece-me tentador e negativo o recurso à temática sexo. Facilmente se é vítima da banalidade. Entretanto, há, neste grupo, algum escritor, que constrói as suas crónicas, do princípio até ao fim, sem meter sexo. E fica tudo muito bem, sem ele. Enquanto, em outros, chega-se perto da pornografia. Eu penso que o poeta é educado e delicado, como a mulher: não lhe fica bem dizer um palavrão. A poesia é mais delicada do que a prosa. Na prosa, eu até admitiria calão, mas na poesia não. A poesia é discreta e delicada, resiste à linguagem denotativa, insiste na conotativa. O poeta não chama todas as coisas pelo seu nome. Transfigura, como faz o Hélder Faife. Consegue meter nos seus textos cenas de sexo, mas de forma limpinha, e por isso eu não lhe faço a menor observação. Depois, acho que todos estes escritores precisam de recordar-se dos níveis da língua, e saber que a literatura não está num nível qualquer, da gíria, do calão, do informativo nem do referencial. É linguagem cuidada.
Soletras: Em relação à reescrita. Acha que estes jovens escritores a praticam?
P. Ferreira: Alguns destes jovens deveriam adquirir o hábito de reescrever os textos, para lhes melhorarem a qualidade. Não se pode pensar logo que tudo está bem, pois há sempre um caminho a percorrer.
Soletras: Os bons críticos literários chegam a não ganhar a simpatia dos escritores. Com este livro, o senhor pode seguir o mesmo caminho…
P. Ferreira: Posso, sim! Primeiro, eu não garanto que o livro esteja isento de todos os traços da leviandade. É tão difícil atingir, sempre e em tudo, a profundidade. Também não estranharia se alguém lesse superficialmente, e ficasse zangado. Mas eu não temo reacções negativas. Se elas vierem, não me perturbam. Não escrevi o livro para receber louvores, escrevi-o por amor a jovens escritores, que nem conheço, e por amor à literatura moçambicana. Estou certo de que estes escritores aqui são adultos, responsáveis, capazes de discernir. E todos eles têm, agora, a certeza de que o seu livro foi lido, por alguém que tem algum conhecimento disto e daquilo, e que dedicou grande parte do seu tempo a fazê-los conhecer e estimar a um público cada vez maior. Se algum deles se voltasse contra mim, o problema seria dele e não meu! Eu aconselhá-lo-ia a gritar baixinho, para não se fazer ouvir por algum dos que falam de mediocridade!
Soletras: Parece que há uma pequena confusão entre os escritores mais velhos e os mais novos. Há quem chegue a dizer que a literatura produzida pelos jovens é medíocre. Em que lado da querela o senhor está?
P. Ferreira: No prefácio do livro, digo que não tenho autoridade para estabelecer a fronteira entre os escritores mais velhos e os mais novos. Mas aos que se consideram mais velhos, eu leio-os, aprecio-os e já publiquei recensões sobre eles. E agora virei-me também para os mais novos. A palavra medíocre não aparece nem podia aparecer no livro, porque se eu achasse medíocres estes escritores, nem me dava ao trabalho de os ler. O termo, para a minha sensibilidade, é pesado. Quando chego a usá-lo, quero dizer que a coisa já está mesmo feia. Mas eu imagino que os mais velhos, quando dizem isso da literatura jovem, só querem dizer que ela não tem a qualidade da deles. Mas eles também já passaram por esta fase, só que não publicaram tão depressa. Quem publica depressa, arrisca-se a ser considerado medíocre. Entretanto, como sói dizer-se, nesta jovem literatura, há madeira para santo ou pano para mangas. No fundo, o que eu procuro «pregar» é que estão aqui uns jovens escritores, que precisam de carinho e incentivo. Eu, um padre de 76 anos, bem mais velho do que alguns dos escritores “consagrados”, dediquei grande parte do pouco tempo que tenho, para os ler, com o cuidado, que este livro manifesta. E valeu a pena.
Soletras: Estando os escritores mais velhos a controlar os grandes prémios literários, há possibilidade de algum deles ser atribuído a um jovem?
P. Ferreira: Acho que, em todo o mundo, os prémios literários não são completamente isentos, têm sempre interesses escondidos. Até o próprio Prémio Nobel é atribuído à mistura com certos interesses, com muitas políticas metidas aí dentro. Esses prémios passam por um crivo, em que há sempre furos. Portanto, não me admira que haja aspectos menos recomendáveis, nos nossos concursos literários. Do grupo destes escritores, que estão no livro, algum poderia ser distinguido em grandes prémios nacionais. E, afinal, até foi! Haja pessoas que os leiam! Pode acontecer que, por vezes, os júris cheguem a atribuir prémios, sem terem lido todos os livros concorrentes, ou os terem lido sem a devida profundidade. Os prémios estão condicionados pelos que os patrocinam, e pelos que julgam os livros. E há sempre interesses metidos, ocultos muitas vezes. Mas também não me admira que alguns concursos terminem sem vencedores, como o que foi noticiado, na edição passada da revista Soletras. Não acho bem que se faça alarido, quando um concurso termina sem vencedores.
Soletras: Dito isto, acha que a objectividade e transparência são aspectos de difícil alcance, em prémios literários?
P. Ferreira: A objectividade é sempre difícil. É mesmo difícil o júri acertar completamente num livro. Pode não acertar, por defeito seu. E, mesmo acertando, nem todos os concorrentes concordarão, pois qualquer um, que escreva um livro, tende a pensar que o seu será o melhor. De qualquer forma, concordo com o escritor Alex Dau, que disse [em entrevista à Soletras]: em Moçambique devíamos ter uma academia de artes e letras, que deveria ser responsável pela organização de prémios literários, a bem da transparência. E deveria diversificar-se ou alargar-se o corpo de jurados, passando a incluir jornalistas culturais, académicos, docentes universitários, etc,. Pessoas que conheçam verdadeiramente a literatura moçambicana.
Soletras: Mudando de assunto: na sua opinião, qual é o papel que os nossos escritores devem ter para com a sociedade? Devem ter um comprometimento com ela?
P. Ferreira: A melhor resposta deu-a Mia Couto, há pouco, aquando do seu doutoramento honoris causa. Ele disse que os escritores podem ter uma influência, na construção dos valores éticos. Eu confesso a minha admiração e estima por alguns jovens apresentados neste livro. Pois apresentam grande preocupação com os problemas sociais e éticos. As entrevistas deles publicadas neste livro, dão disso um animador testemunho. Eles querem contribuir para uma sociedade melhor. Por isso, alegro-me com o que disse Mia Couto. E eu, como padre, sinto que faz parte da minha missão acompanhar estes jovens escritores. Alguns deles até parecem tão moralistas como literatos.
Soletras: Alguma coisa, que não lhe perguntamos?
P. Ferreira: Gostaria que outros se dessem ao trabalho, a que me dei eu: ler, com toda a atenção, e, de caneta e papel, ir anotando tudo. Não leiam assim por cima das brasas, para não darem depois opiniões superficiais. A minha opinião pode ser até má, mas superficial ela não é, porque me esforcei por entrar em cheio nos livros. Era bom que houvesse mais críticos, e é isso que estes escritores pedem e merecem. Eu gostaria que o livro se vendesse, não para eu arranjar dinheiro, mas por amor desses escritores que estão aí dentro. Quanto mais gente os conhecer e animar, mais possibilidades há de o nome de Moçambique ir para a frente. Mais jovens escritores moçambicanos serão conhecidos e terão voz, dentro da literatura ou da cultura moçambicana.