quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Retrospectiva literária 2014

 O ano de 2014 já se despediu. Com ele, vão os insucessos, e connosco, ficam as glórias. Aqui nos propusemos recuar no tempo, abrindo as suas preciosas gavetas, para de lá tirarmos os feitos dos que, de mãos dadas, caminham com a literatura. A moçambicana particularmente. 
Janeiro
Mês de ressaca. A Literatura, por tabela, se foi ressentindo da ressaca dos seus fazedores. Sendo altura de traçar planos anuais, poucas foram as realizações. Dessas poucas, tivemos a atribuição do Prémio BCI, edição de 2013, ao escritor Ungulani Ba Ka Khosa, em virtude de a sua Entre as memórias silenciadas ter sido considerada a melhor obra do ano.
Também neste mês assistimos ao surgimento de mais uma revista literária, à qual os idealizadores deram o nome de Soletras – A sopradora de letras. Era mais um grupo de jovens, à semelhança dos da Literatas e do jornal Pirâmides, que decidia praticar activismo literário, através da edição de um jornal. Uma nota importante é que este novo grupo era de fora da capital Maputo. Era do coração de Moçambique, da cidade da Beira. 
Fevereiro
Boa notícia nos veio de fora. Os escritores Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa foram condecorados pelo Estado português, em reconhecimento da importância das suas obras. Os dois autores foram reconhecidos com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, condecoração atribuída a personalidades, que tenham prestado serviços a Portugal, no país ou no estrangeiro.
Também em Fevereiro, o jovem Lino Mukurruza galga milhas, corta matas e atravessa rios, saindo lá da província nortenha do Niassa, com destino à capital Maputo, hospedada no sul do País, para lá manifestar as suas Vontades de partir & Outros Desejos. Uma obra em verso, patrocinada pelo Fundo de Desenvolvimento Artístico e Cultural (FUNDAC).
Março
Neste mês, a escritora Fátima Langa lança mais uma colectânea de contos infantis, intitulado O Leão, a Mulher e a Criança. Com todo o mérito, a escritora chega a ser convidada para participar, semanas depois, ainda dentro do mesmo Março, no XI Encontro Internacional de Escritoras (EIDE), havido na cidade capital brasileira, Brasília. Neste encontro, também representou Moçambique a escritora Márcia dos Santos. 
Ainda dentro de Março, mais uma jovem se “voluntariava” a engrossar o grupo das escritoras, ainda demasiado pequeno. Chama-se Lídia Mussá, e brindou-nos com um conjunto de relatos de mulheres possuídas, ou que já foram possessas, de maridos espirituais.
Abril
Abril abria com o FUNDAC a patrocinar a edição de mais uma obra literária. Também de um jovem, Nelson Lineu, que decide hospedar todos em cada um em Mim. Era mais um sucesso de alguém, que se entregara ao activismo literário, através do movimento literário Kuphaluxa.
Neste Abril, sai também, mas sem patrocínio nenhum, o livro de ensaios O cruzamento de linhas paralelas, um livro produzido de forma artesanal. É da autoria de José dos Remédios e Nelson Manhice.
Em Abril, também houve lugar para uma pausa. Uma pausa, para digerir um luto de tamanho mundial. Morre, neste mês, o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, Prémio Nobel de Literatura 1982.
Lançaram-se três livros de poesia, num só dia. Não foram dois, foram três os coelhos matados com uma só cajadada. Eram livros chancelados pela Ndjira. Nomeadamente: A mão invisível que não é de Adam Smith, de Thahula Ndindane; O porto da Luzes, de Chagas Levene; Frenesim: Poesia em Pétala de Lume, de Eusébio Sanjane.
Maio
Um dos assuntos que deram que falar, em Maio de 2014, foi a palestra proferida pela professora e crítica literária Fernanda Angius. Nesta palestra, a professora alertou para o perigo de se preferir a Tv em detrimento dos livros. Na sua opinião, “A Tv não forma discurso, não cria magia, não cria tecido social”. Mais audaz, a palestrante mencionou os escritores bons e os fracos.
Foi igualmente em Maio que a cidade de Nacala Porto viveu um momento incomum, ao assistir ao lançamento de uma obra literária. Era Emmy Xyx, que alegrava Nacala, com a sua terceira obra De Sol Acções A Sol Unções.
Junho
Junho, o mês da criança, começa com o nascimento do movimento literário Kulemba, “mãe” da Revista Soletras, que nascera em Janeiro. Isso mesmo! A mãe nasceu depois da filha. Jovens decidem dar o corpo à luta para também dar visibilidade à literatura beirense.
Também em Junho, Beira assiste à apresentação de A Mão invisível que não é Adam Smith, um livro de poesia, cujo teor dos versos nos faz recordar os problemas do Moçambique pós-independência e do mergulhado na guerra dos 16 anos.
Neste mês, igualmente foi conhecido o vencedor do prémio Camões, edição de 2013. O poeta, ensaísta e historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva leva o prémio para casa.
 Enfim, vinha a público Dentro da pedra ou a metamorfose do silêncio, de Japone Arijuane. E mais uma vez era o FUNDAC a patrocinar a edição de mais uma obra.
Julho
Este mês é especial para a literatura e para o escritor Adelino Timóteo. Pela primeira vez, é publicado na Europa. E, a partir do chamado velho continente, o escritor anuncia o Apocalipse dos predadores. E o seu amigo padre Manuel Ferreira, o das manias linguísticas, testemunhou esse apocalipse.
Em Julho, morre um Nobel africano da Literatura. Desta vez, foi a escritora sul-africana Nadine Gordimer, Prémio Nobel da Literatura 1991.  
Ainda em Julho, eram distinguidos, com o Prémio Nósside 2013, os jovens escritores Heliodoro Baptista Júnior, Hera de Jesus, Izidine Jaime, Hirondina Joshua e Leco Nkhululeco.
Agosto
Uma pausa demorada, para a literatura moçambicana. Quase tudo parou, para se lamentar a morte de Eduardo White. O poeta perdeu a vida, no dia 24 de Agosto, no Hospital Central de Maputo, vítima de doença, quando se preparava para a cerimónia de lançamento do livro Bom Dia, Dia, chancelado pela editora portuguesa Edições Esgotadas.
Setembro
 O escritor Osvaldo das Neves, através de uma editora artesanal, vem exibir a sua qualidade literária, brindando o público-leitor com A vingança de Jesus Cristo.
E em Setembro, alguém mais morre. É o historiador José Capela, que perdeu a vida vítima de doença.
Neste mês, também se celebraram condignamente os 50 do clássico Nós matamos o cão tinhoso de Luís Bernardo Honwana.
Aqui em Setembro, os jovens escritores sentiram-se frustrados, pois o concurso TDM 2014 terminava sem vencedores. Houve murmúrios, que não deram em nada. Os que sabem diagnosticaram: a jovem literatura está medíocre. Se era verdade, o tempo é que no-lo vai confirmar.
Outubro
O vencedor do Nobel de Literatura de 2014 é o francês Patrick Modiano, “pela arte da memória, com a qual evocou os destinos humanos mais incompreensíveis e descortinou ao mundo a vida na ocupação”, segundo uma nota postada, no sítio oficial da academia sueca, sediada na capital Estocolmo.
Mia Couto recebe mais um prémio. Desta vez, foi nos Estados Unidos da América. Prémio Internacional de Neustadt foi o que o nosso Mia ganhou.
Em Outubro, igualmente, Dany Wambire cansou-se de bater a portas “surdas”, por patrocínio, e endivida-se, para ver publicada a sua A adubada fecundidade e outros contos. E consegue. O livro sai, mesmo produzido de forma independente.
Novembro
Algo inédito acontece: uma editora livresca moçambicana institui um prémio literário. Os jovens agradeceram, e esperam que iniciativas do género se estendam por mais editoras.
 O Fundac fecha em grande. Mais três livros saem patrocinados por ele. São eles: o Prédio 333, de Helga Languana, Jasmins e Chambre de Matiangola e As vozes das minhas entranhas de Deusa D’África.
Dezembro
O prémio José Craveirinha, edição de 2014, é atribuído a Luís Bernardo Honwana, e gera-se debate, nas redes sociais, sobre a elegibilidade ou não do autor.
Eduardo Quive, o agitador cultural, sempre fintando as instituições, que “controlam” a literatura moçambicana, é convidado para participar da feira do livro de Fortaleza, no Estado de Ceará, Brasil. (Redacção)




sábado, 3 de janeiro de 2015

“É preciso tornar a literatura um assunto das massas.”



Não mentem quando dizem que a Soletras, esta revista, pratica o garimpo literário. É que há muito ouro escondido nesta Pérola do Índico, sobretudo nos prémios literários. Um desses ouros é Jofredino Faife, descoberto pelo júri do Concurso Literário TDM 2012. O jovem docente universitário venceu o prémio, no género romance, com o livro A Filha de um Deus Menor, uma obra demasiado adulta para ser de um jovem estreante como este Jofredino. É caso para dizer que estamos diante de um promissor romancista moçambicano. Que se lhe entregue apenas mais papel, tinta e tempo.

Da cidade de Maxixe para a Soletras, fiquemos com as suas parcas palavras e valiosas ideias. 


Soletras: Jofredino entra para o panorama literário moçambicano, pelo Prémio TDM 2012. Porquê esta opção?
Jofredino: Não foi uma opção, apenas foi oportunidade, pois eu já escrevia há algum tempo, e esperava por uma dessas oportunidades. Entretanto, o primeiro prémio que ganhei foi o do FUNDAC, em 2009, com o livro Memórias de um Carteiro, apesar de ele não ter sido publicado. Com o Prémio TDM aconteceu a minha primeira publicação em livro, com o romance A filha de um Deus Menor, e isso não foi algo muito pensado, aconteceu por acaso.
Soletras: E quem era Jofredino, antes deste prémio. Fale-nos da sua estrada literária.
Jofredino: Eu comecei a escrever relativamente cedo, andava no ensino secundário. Quando passei para o ensino pré-universitário, colaborava com um jornal, escrevendo alguma coisa. O primeiro texto denso e longo foi o que escrevi para o Prémio Fundac 2009.
Em termos de influência, não tenho nenhum autor, pois eu comecei a ler na escola e lia tudo o que a biblioteca dava. Então, li um pouco de tudo, não fiquei muito preso a certos nomes literários.  

Soletras: Em A Filha de um Deus Menor, você conta duas estórias, uma que começa em 1980, e outra em 1963. Pelo que se sabe, o senhor nasceu em 1987. Quem é o real narrador deste livro? Reside em si?
Jofredino: Isso é interessante, mas devo dizer que, na altura em que concorri ao prémio do Fundac, com As Memórias de um Carteiro, eu era bem mais novo do que agora, e, mais tarde, quando conheci um dos integrantes do corpo de jurados, ele exclamou: “quando li o seu livro, fiquei com a impressão de que era de uma pessoa já velha”. Portanto, isso não sei explicar, mas cria-me prazer, fascina-me essa forma de contar.
Soletras: Mas Jofredino, quem deste livro é verdadeiramente o narrador? Quem é que usa a sua “boca” para contar a estória, ou melhor as estórias?
Jofredino: Como o livro foi criado, na parte inicial, no prólogo, mostra-se que o narrador, por detrás, é Madalena, a filha da Maria. Ela, apesar de ser uma das personagens principais, é quem conta as estórias. Ela, a dado momento da sua vida, pára e olha para trás. No começo, ela narra sobre o berço do seu nascimento; e no final, no epílogo, apercebemo-nos de tudo o que foi feito por ela, até à altura, em que ela se consagra como freira.    
Soletras: Neste Romance, você constrói duas estórias, a de Maria e a da filha Madelena. A de Maria começa em 1963, nos arrozais da Manhiça, e a de Madalena, em 1980, após a morte da mãe. O tempo das duas estórias é distante, mas você as conta em simultâneo, o que confunde os leitores. Era sua intenção maltratar os leitores? 
Jofredino: Não queria maltratar os leitores, trata-se de um ponto de análise, e está completamente correcto. O leitor podia pegar os capítulos, de forma intercalada. Ou seja, ler o 1º, 3º, 5º e assim por diante, e depois os capítulos pares. Mas foi uma opção, que tomei, sem muita reflexão, de novo por acaso. Quando escrevia não tive presente o leitor.
Soletras: Nesta de narração, um facto chama a atenção do leitor: num dado capítulo, alguém informou à Madalena, em Portugal, que o Padre Belizário tinha morrido. Entretanto, no capítulo seguinte, o padre era chamado, para cuidar da avó da Madalena. Isso é coincidência na narração?
Jofredino: Confesso que só agora é que noto isso, antes não. Não fui atento, apenas fui virando as páginas. Mas, se isso aconteceu, é uma feliz coincidência, saída duma construção do acaso.
Soletras: Esta forma de contar estórias, de modo duplo, é semelhante à de Mia Couto, em O Outro de Pé da Sereia. A quem realmente rouba?
Jofredino: Por acaso tenho O Outro Pé da Sereia de Mia Couto, mas ainda não o li. Certamente a ele não roubei esta forma de contar. Mas já tinha lido uma estória escrita deste modo, num livro intitulado Do Outro lado do Rio, e achei-a interessante. A estória deste livro era um pouco compreensível, se calhar diferente da do meu. A título de exemplo, eu coloquei nomes muito parecidos, em épocas muito próximas. E isso vi em algum lugar, com certeza.
Soletras: No seu romance, a injustiça é um assunto recorrente. Madalena acha-se filha de um Deus menor, por causa da injustiça, por que passou? O senhor assumiu essa temática, quando escrevia o livro?  
Jofredino: Como autor diria que não, e de novo me surpreendo, com esta leitura. Eu não pensei neste assunto. Os leitores é que estão a surpreender-me com estas leituras. É só isso mesmo.  Estou pensando na injustiça, num outro projecto.
Soletras: O senhor entrou pelo Prémio TDM 2012. De lá para cá, já passa algum tempo. Espera por um outro prémio “TDM”, para lançar mais um outro livro?
Jofredino: Não é que estou à espera de um prémio. Os prémios são bons, mas não me fazem mudar de foco. De 2012, em Dezembro, para cá, apenas passa pouco tempo, um ano e meio. A verdade é que, nesse tempo, não tive calma, para escrever um outro livro ou mergulhar num outro projecto. Mas, nos próximos dias, algo poderá sair.
Soletras: Como avalia a literatura moçambicana?
Jofredino: A literatura moçambicana está num bom caminho. Em termos estatísticos, apesar de não serem muitos com visibilidade no exterior, mas temos conseguido lá alguns prémios. João Paulo Borges Coelho ganhou o Prémio Leya, Mia Couto o prémio Camões. Mas é preciso socializar o livro, é preciso fazer algo para que muitos tenham acesso ao livro. Também é um desafio trabalhar para que os jovens tenham mais oportunidade para publicar um livro. É preciso tornar a literatura um assunto das massas.




O resgate da tradição oral

Editorial - Junho de 2014
Hoje, está na moda falar de tradição e fontes orais. O mesmo não acontecia, no século XIX. As fontes orais estavam descartadas, na construção do conhecimento histórico, por supostas fragilidades, de que enfermam e, sobretudo, pelo preconceito dos que antes chamavam só para si a construção deste conhecimento.
Sabe-se que Auguste Comte e os positivistas, Leopold Ranke e os historicistas, os obcecados pela escrita, não queriam ouvir falar das fontes orais, e chegavam mesmo a dizer que um povo sem escrita é um povo sem história. Todavia, as coisas mudaram, com as revoluções metodológicas verificadas no século XX, no campo da ciência histórica. Encabeçou essas revoluções a Escola dos Annales , e as fontes orais passaram a figurar como um ingrediente válido para o “prato” da História.
Talvez seguindo esses ventos de mudança, a Fundação Contos para o Mundo decidiu mergulhar no mar da oralidade moçambicana, para nele pescar as histórias que o habitam. Esta oralidade é parte da cultura dos moçambicanos, mas tende a ser vandalizada pela modernidade, e os seus portadores reduzidos a nada, por não dominarem o idioma português.
A Fundação Contos para o Mundo, com a sua missão de resgatar a tradição oral moçambicana, vem mesmo a calhar. Talvez isso possa conduzir muitos jovens moçambicanos ao seu próprio chão. Talvez isso sirva de privilegiada fonte de inspiração para os inúmeros jovens escritores, que, ultimamente, tanto se esmeram para aprender o idioma oficial, mas que, depois, ficaram sem histórias para contar, refugiando-se na poesia.
Portanto, é urgente que escritores moçambicanos, sobretudo os mais novos, acobertados ou não por famigeradas instituições, procurem preservar a tradição oral, ouvindo e escrevendo os inúmeros episódios dela. Ainda, esses jovens escribas podem aproveitar a forma de contar dessas histórias, sempre feita com algum didactismo e invejável beleza.