Texto: Dany Wambire
Entretanto, antes que nos deixemos emocionar com o âmago da escrita de Alex
Dau, temos que trazer o conceito de verosimilhança, no geral, e adaptado à literatura,
em particular. No geral, verosimilhança é
a qualidade ou o carácter do que é verosímil ou verosimilhante; e verosímil o
que é semelhante à verdade, que tem a aparência do verdadeiro, que não repugna
à verdade provável (Alonso, 2013).
Na literatura, o estudo de verosimilhança remete-nos de imediato à mimese,
conceito inicialmente trabalhado por Platão. Segundo este filósofo, citado pela
professora L. Costa (2006), mimese era um tipo
de produtividade que não concebia objectos originais, mas apenas cópias, que
estavam afastados da “realidade”.
E como a arte, para Platão, tinha origem divina e
misteriosa, portanto, a mimese deveria participar do ser originário, “imitando”
em seu conteúdo a realidade das formas e ideias, o que faria pouco provável a
sua ocorrência, motivo pelo qual este filósofo defendeu que a mimese era falsa,
ilusória e prejudicial ao discurso ideal do filósofo. (Costa, 2006).
Esta proposição de Platão, é refutada por Aristóteles, o qual, para
consubstanciar o processo mimético, assevera o seguinte: a arte é afastada da perfeição, da divindade e não
está mais restrita a representação do mundo exterior. Para Aristóteles, a mimese
poderia ser apoiada em verosimilhança, a qual lhe permitia afirmar: "não
é ofício do poeta narrar o que aconteceu, e sim o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade", (Aristóteles apud Sepúlveda, 1992).
Outrossim, na literatura, o escritor pode
comportar-se como um ladrão, roubando algo que é do mundo ou da realidade (mas
que não é guarnecido por ninguém) para lhe servir como mote, caminho que o leve
ao imaginário. E esse exercício cria-nos uma felicidade extraordinária, que é justificada
por Daniela Reyes:
“Furtar o que já está no mundo (…), de maneira que o
objeto deste furto se torne o mote do escritor para contar novas histórias,
parece dar, a nós leitores, ao reconhecermos esse objeto durante a leitura, uma
sensação tão libertadora quanto a surpresa de ver uma nova composição”.
Em “Reclusos do Tempo” de Alex Dau, a verosimilhança estabelece-se de duas
maneiras: a semelhança que os factos narrados têm com a realidade e a credibilidade que os elementos do imaginário da obra
demonstram em relação ao mundo de ficção apresentado. Os contos “Babalaza
de Lisboa” e “Contra-Ataque” são elucidativos das duas formas de
verosimilhança. No primeiro (pags. 13-15), Dau descreve a infelicidade do moçambicano
Anselmo, em Lisboa, por não ter tido o petisco preferido para matar a babalaza,
o que o faz ir às barracas do museu, na cidade de Maputo, logo depois de
aterrar no Aeroporto Internacional de Maputo ― antes mesmo de ir à casa para mudar
de roupa.
No segundo, quanto a nós, o mais belo conto ficcionado de Dau, pela
surpresa que nos afronta no final do mesmo, a ser-nos causada por um estranho
personagem, o narrador autodiegético vê a sua casa assaltada por um “ladrão”, às
2 horas de madrugada, o qual faz investidas destemidamente. E o dono da casa
apercebendo-se da presença do “ladrão”, aplaca-se por cerca de 45 minutos para
apanhá-lo em flagrante. E consegue, derrubando-o mortalmente. Depois, ao invés
de ficar preocupado com o assassinato que acabara de praticar, volta a
deitar-se na cama, orgulhoso de ter agido em legítima defesa, deixando a vítima
estirado sobre o soalho da casa.
Mas o engraçado, soubemo-lo nas linhas posteriores: não se tratava dum
inimigo vulgar (um salteador), mas dum mosquito, que queria matá-lo
transmitindo-lhe uma malária perigosa.
O título escolhido para nomear o livro (também é titulo de um dos contos)
traduz na íntegra aquilo que é a nossa condição vivencial, reclusos ou presos dessa
majestosa cadeia que é o tempo. E o poder do tempo em prender, em concomitante,
inúmeras pessoas já tinha sido previsto pelo historiador Marc Bloch, citado por
Mendes (1993), ao afirmar que a história é “ciência
dos homens no tempo”. Mesmo nos dias de hoje, os vulgares criminosos e
condenados, nas cadeias, preocupam-se mais com o tempo de prisão, do que com as
condições (óptimas ou péssimas) do espaço de reclusão.
A temática nos 12 contos que compõem “Reclusos do Tempo”
é do quotidiano e/ou do passado recente de Moçambique. As suas estórias são
“pescadas” do grande universo inspirador, fazendo com que a sua literatura traduza
fielmente o proposto por Chklovski, “a
arte como a singularização de momentos importantes”.
De forma breve, vejamos o teor de alguns textos. O
primeiro, intitulado “A terceira noite”, aborda a (in)felicidade de Mudumela na
cerimónia de casamento, cuja lua-de-mel não foi abençoada pela prática de amor,
pois a parceira de Mudumela, na véspera, acabara de ficar menstruada. Todavia,
Mudumela teve o pronto-socorro duma “Striper”, Marta, e posteriormente cogitou
a possibilidade de ser polígamo por seguinte razão: “sempre uma podia
substituir a outra, quando uma delas estivesse menstruada” (Dau, 2009, p. 7).
No terceiro conto, “ A vítima”, o autor fala do trágico
fim de um assassino (Macamito). O conto “o Fracasso de N’dani”, aborda a força
do amor de Samage, a qual o fez lutar com um leão espiritual pela posse de
Malia, a moça bonita.
A escrita com que Alex Dau cose a indumentária dos seus
textos é um misto de linguagem poética e prosaica, fazendo lembrar a escrita de
Mia Couto, em que a prosa é objectivo e a poesia o método para conduzir o
leitor à mensagem ou destino ― às vezes, não existindo a querida mensagem ou
destino, restando-nos apenas a bela viagem. Esta escrita chega a ser
“turística”, cujo destino é o próprio caminho que se percorre: “O
silêncio nocturno foi baleado por uma ‘makarov’. Duas balas vaguearam pelo
bairro à procura de seu alvo, depois uma ‘akm’ matraqueou, impondo o vigor de
seu calibre” (Dau, 2009, p. 41).
Referências bibliográficas
COSTA. A poética
de Aristóteles – Mímese e verossimilhança. Edição Revista. SP. Ática, 2006.
DAU, Alex. Reclusos
do Tempo. Maputo. AEMO, 2009.
MENDES, José M. Amado. A História Como Ciência: Metodologia e
Teorização. 3ª Edição. Coimbra: Coimbra editora, 1993.
REYES,
Daniela. “A Verossimilhança em
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis”. Revista Eutomia. Ano I
– Nº 01 (614-620).
SEPULVEDA, Carlos. Verossimilhança
e diferença: a ordem do discurso narrativo e a modernidade; In: “VII Encontro Nacional da ANPOLL”, Porto Alegre. 1992.
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